Em 448 páginas, num formato de 15×23 cm, V. S. Naipaul, autor de “Um Caminho no Mundo” (Quetzal, 2021), procura entender o mundo como ele é, não como queremos que ele seja, descrevendo a beleza da natureza, a intemporalidade da história mas, também, as imperfeições dos homens. E fá-lo de forma autobiográfica, contando histórias.
Vidiadhar Surajprasad Naipaul (1932-2018) nasceu no seio de uma família de origem indiana, nas Caraíbas (em Trinidad), sob o domínio colonial dos britânicos. Nos seus textos, procurou encontrar um caminho no mundo a partir dessa origem complexa. Passou a infância e a juventude em Trinidad, sentindo-se muito diferente dos pouquíssimos índios remanescentes locais, não se identificando com os negros descendentes de escravos que foram levados para a ilha e, tampouco, com os colonizadores brancos britânicos. Para agravar a situação, não era um autêntico indiano como seus pais, pois tinha nascido longe da Índia com a qual mal se identificava.
Com base nas suas experiências de vida, V. S. Naipaul utiliza uma mandala de observações, critérios e percepções diversos em si mesmos, para recriar o seu sentido no mundo e a sua identidade. Esta ausência de um espaço no mundo e a falta de modelos para se espelhar marcou-o, norteando boa parte de sua obra. Com a fama de misantropo e de personalidade difícil, ainda assim Naipaul granjeou fama e reconhecimento do público e da crítica, deixando uma obra consistente que lhe permitiu ser galardoado, em 1971, com o Booker Prize e, em 2001, com o Nobel da literatura, por ter “uma narrativa perceptiva unida e um escrutínio incorruptível em trabalhos que nos obrigam a reparar na presença de histórias reprimidas”.
Com uma carreira que abarcou meio século, viajou como um “colonial descalço” da rural ilha de Trinidad para a classe alta inglesa, sendo elogiado como um dos maiores escritores ingleses do século XX. Entre as suas obras mais aclamadas estão os romances, traduzidos em português, “A Curva do Rio” ou “Uma Casa para Mr. Biswas”, sendo ainda autor de “Uma Vida pela Metade”, “Num Estado Livre”, “A Máscara de África” ou “Para Além da Crença”, entre dezenas de outros.
“Um Caminho no Mundo”, registado em 1994 e agora publicado editado pela Quetzal, é um livro sobre a presença da história do mundo na vida de cada pessoa, independentemente da sua capacidade de a reconhecer. Apela por isso à memória, impressionando com as semelhanças com a actualidade – por exemplo, quando retrata imigrantes sem sitio para viver, sem quem os represente, com direitos limitados, atormentados pelos nativos dos sítios em que procuraram refúgio. Será que o mundo não aprendeu nada?
Através dos personagens que se cruzam, com trajectórias diferentes, há em comum uma forte componente política e administrativa, um olhar critico e distanciado da guerra, da expropriação de um povo e da reconquista da identidade. Para alguns personagens, o regresso a locais onde iniciaram o seu caminho de apropriação critica da realidade fá-los crescer e consolidar a independência de pensamento, brincando com a mudança de escala e o confronto com a memória, essa extraordinária forma de materialização da emoção.
Para tanto, Naipaul começa nas Caraíbas dos tempos modernos, nos anos de 1940, em Port of Spain, sua cidade natal, e acaba em África. Estamos perante uma obra de fôlego épico, composta por nove narrativas interligadas, que atravessam séculos e oceanos e fazem o extraordinário retrato de indivíduos apanhados na correnteza da História, entrelaçando personagens reais, reconstituições históricas de grande carga dramática e alguma ficção.
A escrita de V. S. Naipaul é, em muitos aspectos, uma narrativa histórica, repleta de acontecimentos reais e, mais relevante, do seu impacto nas personagens, potenciando o olhar critico que o autor não esconde, relativamente ao colonialismo, à forma por vezes canibalesca de afirmação entre povos. A determinada altura o discurso é introspectivo, a perspectiva do próprio escritor, especialmente quando relata a forma como realidade se apresenta, despida de sentido para quem se arroga de observador externo e isento, com posições estereotipadas, de mero analista. Acima de tudo, Naipaul procura os testemunhos dos visitantes do mundo, através dos quais parece reencontrar as suas próprias fundições mais instintivas e camufladas.
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