Rita Ferro é uma escritora portuguesa incontornável, que deu à estampa mais de duas dezenas de livros que descrevem e densificam a realidade da sociedade portuguesa, dos seus costumes, desideratos e valores, tornando a sua poderosa escrita – acutilante, mordaz e simultaneamente irónica e espontânea – atractiva em vertentes (e testemunhos) tão importantes como a crónica social, a história sócio-política contemporânea, a história das mentalidades e a história do pensamento das mulheres.
“Um amante no Porto” (D. Quixote, 2018) é um romance vibrante com um forte cunho de retrato da época contemporânea, escrito por uma protagonista feminina – e no feminino – e atravessado pelos maravilhosos detalhes psico-cómicos do seu pensamento: Zara, que tem um amante no Porto (Álvaro), um homem bastante enigmático no que concerne à sua vida afectiva e pessoal, desafiando-a (aliás, qualquer mulher) a tentar saber mais.
Há, nesta relação afectiva, diversas oportunidades: a oportunidade (literária) de Zara contar a história de Álvaro, um menino aparentemente “bem-nascido” no início década de cinquenta (1950), com todo o desfilar vívido de memórias, locais, usos e costumes do Porto e da Foz; a oportunidade (também literária) de se auto-descrever e de fazer a sua auto-biografia de jurista lisboeta (bem mais jovem que Álvaro): a oportunidade (social e política) de debater ideias e de mostrar quão distintos podem ser os universos psicológicos de um homem e de uma mulher; e a oportunidade para falar desassombradamente de temas da vida conjugal, como a diferença entre as expectativas do homem e da mulher, a acomodação versus as reivindicações no feminino, a violência doméstica e a vida sexual, explorados através de um olhar emancipado e extraordinariamente culto.
Faz-se, também, a anatomia psicológica do fim de um relacionamento, onde se instala a paz podre: “…vê-lo instalar-se naquela fórmula desenxabida de viver, sem planos para nada, causava-me ( …) uma tal claustrofobia que me obrigava a agarrá-lo figuradamente pelos colarinhos e a sacudi-lo, já sem certezas, por fim, se era a ele ou a mim que tentava salvar da dormência e do torpor com que o excesso de conforto sempre nos corrompe”.
Há, também, um desbravamento ético e relacional de universos mentais distintos (masculino/feminino), e os direitos inerentes a um par: ”Era preciso, pois, gritar a plenos pulmões, atirar coisas pelo ar, agarrar em todas as armas de arremesso ao nosso alcance para que temessem pela sua tranquilidade, nos estimassem, respeitassem, e dessem, enfim, pela nossa presença, o nosso sofrimento e a fórmula egoísta, injusta ou prepotente com que tantos nos desafiavam.”
Depois há o exercício de gaslighting (termo usado na literatura clínica desde 1960), expediente utilizado sistematicamente por Álvaro quando se sente encurralado numa discussão com Zara (manipulação psicológica que leva o interlocutor a pensar que os factos a que assiste só existem na sua imaginação) e que deixa esta confusa e emocionalmente desgastada.
Por último, descobrimos em “Um amante no Porto” um universo pessoal absolutamente surpreendente e chocante – de Álvaro, de Zara e, também, de nós próprios: a desmistificação do que pensamos saber sobre o Outro.
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