Primeiro houve “O Meu Nome é Lucy Barton“, livro em que a escrita navegava magicamente entre o diário de uma adolescente e as profundezas do mais íntimo da alma humana, num livro que mostrava o lado mais cruel do amor. Um retrato da literatura enquanto salvação e ferida, do acto de se ser implacável, da superação individual.
A história, que terminava com a emancipação de Lucy Barton, numa cena a fazer lembrar Thelma e Louise – mas apenas com Thelma e sem ravina à vista -, continua agora em “Tudo é Possível” (Alfaguara, 2018), onde a agora famosa escritora regressa à sua cidade de infância, em pleno Midwest, para apresentar o seu último livro numa livraria local.
O livro desce uns degraus relativamente ao seu sucessor mas, no que toca à construção de personagens, Elizabeth Strout volta a fazer magia. A galeria humana está ao nível de um Louvre literário, por onde se passeiam figuras como: Tommy Guptill, que teve em tempos uma quinta mas que acabou por perder tudo, empregando-se depois como contínuo na rede escolar de Amgash. Alguém que guarda um segredo que, depois de partilhado, perde a sua aparente religiosidade; Patty Nicely, conhecida como Pattyzinha Gordinha, alguém para quem a ideia de sexo não passa do dar as mãos. “Amamos de um modo imperfeito“, diz como se de um mantra se tratasse, trabalhando com adolescentes que não suporta; Linda Peterson-Cornell, que gostava que o marido, com quem tem uma empresa familiar de voyeurismo e “cuja inteligência em tempos tanto a impressionou, simplesmente desaparecesse“; Charlie Macauley, que sofre de stress pós-combate e vive com alguém que não suporta – mas que lhe enche o coração expatriado de pena; Pete Barton, irmão de Lucy, que não a vê há dezassete anos – apesar de falarem ao telefone quase todos os domingos; Vicky, a irmã de Lucy, sempre pronta para uma recriminação; ou Anne Apleny, cuja história poderia bem ser a de Lucy antes de esta ter tentado a sua sorte numa outra geografia.
Strout tem um dedo especial para ligar todas estas personagens numa geografia sentimental do lugar, feita sobretudo de perda, mas nunca deixando de contrapor, ao sofrimento, uma compaixão que já é de assinatura.
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