José Rentes de Carvalho, de ascendência transmontana, é o autor português mais conhecido na Holanda, país onde habita desde 1956, ou seja, há seis décadas, e onde foi docente de Literatura Portuguesa entre 1964 e 1988. Dedica-se desde então exclusivamente à escrita e a uma vasta colaboração em jornais portugueses, brasileiros, belgas e holandeses, além de várias revistas literárias. A sua bibliografia inclui romances (“Montedor” ( 1968), “O Rebate” (1971), “A Sétima Onda” (1984), “Ernestina” (1998) e “A Amante Holandesa” (2003) contos, diário (“Tempo Contado ou Tempo sem Tempo”), crónica (“Mazagran”, 1992) e guias de viagem.
“Trás-os-Montes, o Nordeste” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2017), integrado na colecção Retratos da Fundação Francisco Manuel dos Santos, é um ensaio borrifado de oportunos apontamentos autobiográficos, que retrata com fidelidade (mas de forma pessoalíssima) o encontro entre o agora e o então daquela zona do interior norte de Portugal, região recôndita e misteriosa, com uma rusticidade e beleza próprias que o autor mostra conhecer muitíssimo bem: ”a própria carne, a minha gente, as dores que escondemos, o mal e o bem que traz esta maneira transmontana, tão nossa, toda de repentes, dilacerados desde o berço entre o carinho e a fúria, a ânsia de partir e a praga de ficar, a liberdade e a prisão” ;“Boa gente, estranha gente, vivendo presa aos anseios de um tempo que passou”; (…) apenas certo que ser transmontano, tanto como uma origem é um destino.”.
Um retrato do nordeste transmontano que evoca as montanhas majestosas, as paisagens, as deliciosas tradições gastronómicas, as vias de acesso, as vilas e aldeias históricas intocadas, os roteiros de viagem, os costumes primitivos (e mantidos com orgulho), o então paupérrimo e atrasado de há (apenas) 80/90 anos, a lonjura da capital, “cabeçorra desproporcionada que desde há séculos anemia Portugal, sugando-lhe a energia, chamando tudo a si “e, apesar de tudo, a hospitalidade genuína de uma província indefesa e isolada.
Há uma curiosa descrição de uma visita de holandeses, belgas e franceses, organizada pelo autor no verão de 1996 que, enquanto durou, criou animação e até trouxe melhorias nos esgotos, pavimentos e na iluminação pública (aldeia de Estevais de Mogadouro), mas após um ano o cidadão (transmontano ou não) “”, porque tudo continua basicamente na mesma.
Este ensaio contém páginas que descrevem a complexa condição feminina antes e após o 25 de abril, criticando hábitos “insultuosos” contra os homossexuais da região, considerando que se vive ainda uma “escuridão medieval”. Sobre a questão da “homossexualidade clandestina“, – porque em Trás- os- Montes “não se fala dessas coisas”, antes se ignoram (existindo mesmo um teatro do absurdo) -, parte da população daquela região portuguesa é, diz o autor, obrigada a viver no anonimato, por razão de tabu social, votada a “um desumano e insidioso ostracismo”.
Ensaio (ou, como diz Rentes de Carvalho, um testemunho, um amontoado ecléctico de impressões) magnífico, lúcido e corajoso, misto de autobiografia e de roteiro de viagem (também ao íntimo do ser humano transmontano), “Trás-os-Montes, o Nordeste” é uma obra a ler com a certeza de ser absolutamente inesquecível.
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