“O comércio governa o mundo.”
“Tono-Bungay” (Antígona, 2019) é daquelas leituras com efeito imediato e a longo prazo. Ao valor do entretenimento, pela prosa intensa e viciante, segue-se a perpetuação de uma imagem que perdura pela contemporaneidade de temas como investimento e engenharia financeira, liquidez e imparidades, especulação e comunicação social, banca rota, fuga e lesados. À parte o lugar-comum da maioria destas expressões, torna-se evidente que encontrá-las reunidas num romance escrito em 1909, por Hubert George Wells (1866-1946), vulgarmente conhecido como H.G. Wells – para muitos o precursor da literatura de ficção científica -, é entramos em algo mais que uma narrativa épica. São mundos subvertidos aqueles que Wells revela quando deixa transparecer a sua visão céptica da sociedade, de subjugação do sonho e da criação científica às regras ditadas pelo mercado.
Por muitos considerado uma das suas obras-primas, em “Tono-Bungay” H. G. Wells serve-se da sociedade inglesa no início do século XX para um exímio exercício de reflexão sobre as implicações éticas e morais nos negócios e na publicidade, realizando, como o próprio narrador afirma a determinada altura, “um exercício de anatomia social“.
O protagonista é George Ponderevo, uma personagem a quem se suspeita que H. G. Wells tenha atribuído um relato fortemente autobiográfico. Filho de uma governanta numa grande casa senhorial, George cresce rodeado pela alta sociedade, da qual é expulso por não respeitar a necessária distância, e passa a viver com o tio, Edward Ponderevo, um excêntrico proprietário de uma loja ao estilo farmácia/boticária. O tio inventa Tono-Bungay, um remédio que promete muita coisa, um verdadeiro “segredo do vigor”, que rapidamente se torna num sucesso de vendas. Embora consciente que o produto não passa de uma vigarice, George é chamado para dirigir a empresa resultante deste sucesso, algo que assume com desconforto, cada vez mais consciente do perigo da publicidade quando o único propósito é fazer enriquecer o seu criador e investidores.
A empresa cresce, os investimentos multiplicam-se e passa a ser frágil a sustentabilidade da bolha comercial e empresarial criada. Igualmente frágil revela-se a integridade moral e ética, quando o que está em causa é a sobrevivência individual e corporativa.
Numa outra dimensão, no amor, o protagonista deste retrato social pejado de humor e de crítica vê-se ainda confrontado com a evidência de que tudo tem, afinal, um valor, ditado pela sociedade consumista, um preço ou um nível que não deve ser comprometido.
Épico, utópico e visionário, H. G. Wells conjuga como ninguém profecias e evidências científicas, causas e efeitos, efeitos benevolentes e efeitos colaterais de um mundo entregue a tolos, sejam eles simplórios, ingénuos, presunçosos ou dementes.
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