Trabalhou como livreira, professora e técnica de informação. Em 2020, anos depois de ter estudado Literatura Inglesa e Ciências de Informação e da Documentação, a canadense Emily Austin recebeu uma bolsa de escrita do Canadian Council for the Arts, que acabou por resultar no seu primeiro romance: “Toda a Gente Nesta Sala Um Dia Há De Morrer” (Topseller, 2022).
Gilda é uma ateista e lésbica que, numa mistura entre partida do destino, sortilégio do acaso, uma preocupante inércia e a urgente necessidade de pagar contas, acaba por se ver a trabalhar como recepcionista numa igreja católica – tinha lá entrado em busca de um anúncio que oferecia serviços grátis na área da saúde mental.
Despedida de uma livraria por mostrar pouco jeito para o atendimento público – para além de ter faltado a um bom número de turnos consecutivos -, Gilda é tudo menos uma jovem saudável. Sofre de problemas de ansiedade, revela ter um hipocondrismo agudo, passa por ataques de pânico pelo menos uma vez por dia, não consegue deixar de pensar na morte e no fim do mundo e é uma habituée do hospital público – até os empregados de limpeza a conhecem pelo nome.
Entrevistada pelo padre Jeff, Gilda passa com distinção na entrevista – basicamente por saber ligar o computador -, assumindo um trabalho onde irá substituir Grace, a anterior recepcionista, uma velhinha simpática recentemente falecida que Grace irá manter viva, trocando mails com uma desconhecida de quem Grace era muito amiga. Aos poucos será tomada pela síndrome do impostor, receando ser desmascarada num lugar onde se colam cartazes a falar da homossexualidade como uma doença.
Diz-se que o primeiro passo para a mudança é o auto-reconhecimento, algo que Grace abraça facilmente: “É óbvio que algo está errado comigo”. Para além de todos os medos e fobias, Grace é também pouco dada a tomar banho, deixando a louça suja ir-se acumulando no quarto como se estivesse a armazenar tijolos para construir uma pirâmide. Estranhamente ou não, tem em Eleanor o mais perto que há de uma namorada, mesmo que, quase sempre de forma inconsciente, vá fazendo tudo para dar cabo da relação.
Para além de Gilda, Emily Austin reuniu um conjunto de personagens insólitas, construindo um circo literário que está entre o macabro e a pura diversão: uma vizinha paranóica com a segurança do prédio, que usa calças de pijama cor-de-rosa cobertas de imagens de pequenos copos de martini; Barney, o contabilista viscoso que tem todo o potencial para ser acusado de assédio sexual; Jeff, o padre que vai reprimindo a raiva com voltas consecutivas ao rosário e à fé; Ingrid, a amiga de infância – só mesmo daí – com quem mantém a tradição de oferecer peluches em dias de aniversário; ou Giuseppe, um maníaco do corpo e claramente extrovertido, que é da opinião de que basta escolher a felicidade para que as coisas não corram mal.
Com este leque de inadaptados, Emily Austin constrói, quase sempre a partir do monólogo interior de Gilda, uma história de redenção pessoal, juntando-lhe ainda uma trama detectivesca – quem matou Grace? Onde raio se meteu o gato Mittens? – e um humor ateístico que surge como um dos grandes triunfos deste livro. Como diria Gilda, “dizer que alguém foi levado para junto do Senhor faz parecer que Deus anda a roubar pessoas”.
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