É um daqueles casos em que, depois de ter lido o livro a adaptar ao grande ecrã, o realizador decidiu esticar a corda toda. Fala-se de “The Shining” (Bertrand Editora, 2021), livro de culto assinado pelo norte-americano Stephen King, o qual Stanley Kubrick conduziu a um patamar superior e bem mais sangrento, muito à boleia da interpretação genial e sem freio de Jack Nicholson.
Um livro com uma larga dose de autobiografia, centrado num professor alcóolico e aspirante a escritor em declínio, que correspondeu a um período no qual Stephen King teve um problema muito sério com o álcool. Em “Escrever”, livro de não ficção que está entre a biografia e o manual de escrita, King fala sobre esse período: “As minhas noites durante os cinco últimos anos em que bebi acabavam sempre com o mesmo ritual: pegava em todas as cervejas que havia no frigorífico e despejava-as no lava-louça. Se não fizesse isso, ficariam a chamar-me quando eu estivesse na cama até me levantar para pegar noutra. E noutra. E mais numa”. Ao mesmo tempo, é também inspirado pela fase em que King mais duvidou da sua escrita, incerto sobre se a literatura seria realmente o caminho a percorrer. A certa altura em “The Shining”, Jack partilha “o sentimento de que a sua produção literária não passava de bolas de papel em branco que acabavam no cesto de papéis”.
Com um passado recente onde há muita violência – incluindo o braço partido ao filho quando este tinha três anos – e ainda mais consumo de álcool, Jack Torrance, a sua mulher e o filho de ambos mudam-se temporariamente para o luxuoso, remoto e histórico Hotel Overlook, onde Jack irá assumir as funções de guarda de inverno, olhando para esta como a última chance de se redimir e, com isso, salvar um casamento que está pelos arames – ao mesmo tempo que tentará terminar a peça de teatro que anda a escrever há uma eternidade.
Watson, o faz-tudo misógino a quem cabe explicar tudo sobre o Overlook, diz que pelas suas contas “talvez já tenham morrido neste hotel quarenta a cinquenta pessoas desde que o mês avô o inaugurou, em 1910”, o que vai de encontro a um mito urbano que parece ter aqui pernas para andar: todos os grandes hotéis têm escândalos e fantasmas.
Será pelos olhos de Danny, um quase médium “a meio caminho entre um bebé e um miúdo a sério”, com um poderoso amigo imaginário e um tremendo receio sobre a palavra divórcio, que iremos assistir ao ruir de uma relação. Um cenário de cisão que, se no caso da mãe está ligado a um evento do passado, no pai corresponde a pensamentos mais complicados, “de um tom roxo-escuro com veias negras assustadoras”.
Ao fazer-nos entrar no Hotel Overlook, um “lugar desumano” que “gera monstros desumanos” – e que tem mesmo um quarto vermelho que evoca a Morte Vermelha de Edgar Allan Poe -, Stephen King trouxe o terror para o coração da ficção, fazendo-nos olhar bem fundo para a alma humana, naquele que, nas entrelinhas, poderá ser lido como uma história tenebrosa e inquietante sobre a violência doméstica.
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