Catarina Gomes nasceu em Lisboa, no ano de 1975. Foi jornalista do Público durante quase 20 anos, tendo recebido vários prémios nacionais importantes – tais como o Prémio Gazeta – por algumas reportagens. A nível internacional, foi duas vezes finalista do Prémio de Jornalismo Gabriel García Márquez, e recebeu ainda o Prémio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha.
A sua vida literária começou a ser desenhada no universo da não ficção, com três obras que fazem parte do Plano Nacional de Leitura. “Furriel não é nome de pai” revela a história desconhecida dos filhos que os militares portugueses tiveram com mulheres africanas durante a Guerra Colonial, e que deixaram para trás. “Pai, Tiveste Medo?” aborda a forma como a experiência do conflito chegou à geração dos portugueses filhos de ex-combatentes. “Coisas de Loucos” conta as vidas de oito doentes psiquiátricos, a partir de objectos pessoais que deixaram para trás no antigo Manicómio Miguel Bombarda.
A entrada na ficção deu-se com “Terrinhas” (Gradiva, 2022), romance vencedor do Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís. Um livro que conta uma história de medo, sacrifício e conquista, mas também de muitos segredos – bem como de perguntas que, ao longo da vida, ficam por fazer, e para as quais nunca teremos respostas. Sobre os erros que se perpetuam, sobre o medo da herança genética, mas também sobre olhar o outro com atenção, descobrindo que cada um tem a sua maneira de gostar – e de o mostrar. Um romance que abre com um parágrafo que nos apresenta a esta fascinante personagem chamada Cláudia: “Quer queira quer não, nas minhas memórias mais antigas parece que descubro batatas. Sempre me foram íntimas. Na casa onde eu cresci dava a impressão de que até tinham direitos”.
Ao longo da história, há imagens que povoarão as memórias de criança de muitos leitores, como a dos melões vendidos à beira da estrada, de garrafões a serem enchidos com água da nascente ou de produtos tão úteis como foram – ou são – o Ajax, o Karpex ou o Presto, num livro que é muito português.
A certa altura, Cláudia fala das memórias e do acto de recordar como uma “alegria triste”. Todo o livro, aliás, aponta ao acto de recordar. A dado momento, lê-se isto: “…foi a morte que veio dar importância a gestos tão banais. Na altura, quem o pai e a mãe eram, como agiam, nada tinha de intrigante”. E, logo a seguir: “Podemos estar dentro de uma recordação e nem nos apercebermos. Sabemos lá nós o que vai ficar para a nossa história”. Se há algo que o livro nos mostra, é a importância de dar valor aos pequenos momentos, mesmo aos mais banais. Tal como o tio de Kurt Vonnegut que, a cada um dos momentos em que pressentia um resquício de felicidade, lançava um “mas há algo melhor do que isto?”. A memória é aquilo que nos forma, mesmo que esse acto seja sinónimo de alguma tristeza.
Cláudia é uma mulher urbana, para quem o mundo rural havia desaparecido com os pais. A herança inesperada, recebida de alguém que nunca conheceu, fá-la-á pensar que “na aldeia nada pode ter valor e, nesta fase da vida à qual cheguei, à qual me esforcei por chegar, o que me queira transmitir de lá só pode representar um estorvo, algo a fazer desaparecer”, fazendo dela, de certa forma, a personificação do abandono do mundo rural português, do desprezo pelo interior. Mundo rural que, diga-se, não surge aqui pintado de forma glamorosa, em lugares onde os erros de alguns marcam para sempre todos os outros, mesmo que ligados de forma muito ténue.
Há, ainda assim, tradições que permanecem fora dessa ruralidade, como a do luto eterno: “O preto era o símbolo de uma viuvez que se inaugurara com a morte antiga desse homem que desaparecera quando ainda faltava muito para eu nascer. Era um preto com início concreto, mas sem fim, como uma história que começa e não acaba. […] Tinha a impressão de que sem aquela cor que carregava se podia perder de si mesma”.
Cláudia é uma pessoa organizada, metódica, solitária, avessa a grandes convulsões e adoradora da ordem, uma designer de interiores que, ao olhar para as cores da natureza, prefere traduzi-las em pantones ao invés de se perder na contemplação ou do espanto. No seu confronto com o indesejado, acaba por sentir que o passado pode ser alvo de acrescentos, embarcando numa inquietação à volta do significado de “terrinha” que deveria também ser a viagem de cada leitor.
A beleza e o mistério de “Terrinhas” é o de permitir leituras variadas, como um espelho colocado frente a cada um dos leitores. Uma das leituras é, talvez, a de que nos habituámos mal a “uma vida macia, dentro das nossas casas calafetadas, repousando em roupas de cama algodoadas. Que tenhamos feito de tudo para vivermos envolvidos em suavidade e tepidez”, como se o comodismo fizesse com que nos esquecêssemos de onde e como nascem as coisas.
Sem Comentários