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“Terrinhas” | Catarina Gomes

Por Pedro Miguel Silva · Em 29/08/2023

Catarina Gomes nasceu em Lisboa, no ano de 1975. Foi jornalista do Público durante quase 20 anos, tendo recebido vários prémios nacionais importantes – tais como o Prémio Gazeta – por algumas reportagens. A nível internacional, foi duas vezes finalista do Prémio de Jornalismo Gabriel García Márquez, e recebeu ainda o Prémio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha.

A sua vida literária começou a ser desenhada no universo da não ficção, com três obras que fazem parte do Plano Nacional de Leitura. “Furriel não é nome de pai” revela a história desconhecida dos filhos que os militares portugueses tiveram com mulheres africanas durante a Guerra Colonial, e que deixaram para trás. “Pai, Tiveste Medo?” aborda a forma como a experiência do conflito chegou à geração dos portugueses filhos de ex-combatentes. “Coisas de Loucos” conta as vidas de oito doentes psiquiátricos, a partir de objectos pessoais que deixaram para trás no antigo Manicómio Miguel Bombarda.

A entrada na ficção deu-se com “Terrinhas” (Gradiva, 2022), romance vencedor do Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís. Um livro que conta uma história de medo, sacrifício e conquista, mas também de muitos segredos – bem como de perguntas que, ao longo da vida, ficam por fazer, e para as quais nunca teremos respostas. Sobre os erros que se perpetuam, sobre o medo da herança genética, mas também sobre olhar o outro com atenção, descobrindo que cada um tem a sua maneira de gostar – e de o mostrar. Um romance que abre com um parágrafo que nos apresenta a esta fascinante personagem chamada Cláudia: “Quer queira quer não, nas minhas memórias mais antigas parece que descubro batatas. Sempre me foram íntimas. Na casa onde eu cresci dava a impressão de que até tinham direitos”.

Ao longo da história, há imagens que povoarão as memórias de criança de muitos leitores, como a dos melões vendidos à beira da estrada, de garrafões a serem enchidos com água da nascente ou de produtos tão úteis como foram – ou são – o Ajax, o Karpex ou o Presto, num livro que é muito português.

A certa altura, Cláudia fala das memórias e do acto de recordar como uma “alegria triste”. Todo o livro, aliás, aponta ao acto de recordar. A dado momento, lê-se isto: “…foi a morte que veio dar importância a gestos tão banais. Na altura, quem o pai e a mãe eram, como agiam, nada tinha de intrigante”. E, logo a seguir: “Podemos estar dentro de uma recordação e nem nos apercebermos. Sabemos lá nós o que vai ficar para a nossa história”. Se há algo que o livro nos mostra, é a importância de dar valor aos pequenos momentos, mesmo aos mais banais. Tal como o tio de Kurt Vonnegut que, a cada um dos momentos em que pressentia um resquício de felicidade, lançava um “mas há algo melhor do que isto?”. A memória é aquilo que nos forma, mesmo que esse acto seja sinónimo de alguma tristeza.

Cláudia é uma mulher urbana, para quem o mundo rural havia desaparecido com os pais. A herança inesperada, recebida de alguém que nunca conheceu, fá-la-á pensar que “na aldeia nada pode ter valor e, nesta fase da vida à qual cheguei, à qual me esforcei por chegar, o que me queira transmitir de lá só pode representar um estorvo, algo a fazer desaparecer”, fazendo dela, de certa forma, a personificação do abandono do mundo rural português, do desprezo pelo interior. Mundo rural que, diga-se, não surge aqui pintado de forma glamorosa, em lugares onde os erros de alguns marcam para sempre todos os outros, mesmo que ligados de forma muito ténue.

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Há, ainda assim, tradições que permanecem fora dessa ruralidade, como a do luto eterno: “O preto era o símbolo de uma viuvez que se inaugurara com a morte antiga desse homem que desaparecera quando ainda faltava muito para eu nascer. Era um preto com início concreto, mas sem fim, como uma história que começa e não acaba. […] Tinha a impressão de que sem aquela cor que carregava se podia perder de si mesma”.

Cláudia é uma pessoa organizada, metódica, solitária, avessa a grandes convulsões e adoradora da ordem, uma designer de interiores que, ao olhar para as cores da natureza, prefere traduzi-las em pantones ao invés de se perder na contemplação ou do espanto. No seu confronto com o indesejado, acaba por sentir que o passado pode ser alvo de acrescentos, embarcando numa inquietação à volta do significado de “terrinha” que deveria também ser a viagem de cada leitor.

A beleza e o mistério de “Terrinhas” é o de permitir leituras variadas, como um espelho colocado frente a cada um dos leitores. Uma das leituras é, talvez, a de que nos habituámos mal a “uma vida macia, dentro das nossas casas calafetadas, repousando em roupas de cama algodoadas. Que tenhamos feito de tudo para vivermos envolvidos em suavidade e tepidez”, como se o comodismo fizesse com que nos esquecêssemos de onde e como nascem as coisas.

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Pedro Miguel Silva

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