Já se sabe que, em terras de Sua Majestade, existe uma fixação louca pelos colégios internos. Quem sabe antecipando a ideia de que, mal o curso esteja concluído – se não antes -, é tempo de a prole fazer a trouxa e dar de frosques. Orson Wells, autor de monumentos literários como “A Quinta dos Animais” ou “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro”, não escapou a esta aventura com todo o ar de tropa macaca. No seu caso, a experiência decorreu entre os 8 e os 13 anos de idade, de 1911 a 1916, no colégio interno de St. Cyprian`s.
Iniciado por volta de 1939 e concluído em 1947, o ensaio biográfico “Tamanhas Eram as Alegrias” (Cavalo de Ferro, 2023) foi publicado três após a morte de Orwell, por receio de que os envolvidos, mesmo que no livro surgissem com os nomes alterados, pudessem avançar para tribunal – nesta versão mantiveram-se os nomes originais. Aliás, depois da publicação houve quem se chegasse à frente para se mostrar espantado com a visão de Orwell, como Cyril Connolly, um escritor contemporâneo de Orwell, ou uma amiga de infância que disse isto: “Posso garantir-vos que o “Eu” de Tamanhas Eram as Alegrias, expresso na personagem de Eric, é uma versão irreconhível da pessoa que conhecemos naqueles anos”.
A dado momento, o próprio Orwell chegou a referir que o exagero e a fraca memória foram motores para a escita do texto, mas nunca apresentou a história como sendo um acto de invenção. Como escreve Sean Michael Wilson na Introdução, “em momentos mais tardios da vida alguns traços das nossas histórias pessoais tornam-se mais claros, inteligíveis e iportantes do que outros. Deste modo, o que surge neste livro são os pontos de vista nos quais ele decidiu focar-se”. Afinal, a forma como vemos o mundo dificilmente dificilmente é apreendida pelos outros.
“Pouco depois de chegar à St. Cyprian`s, comecei a urinar na cama”. Começa desta forma a história de Eric, que rapidamente se vê tomado por “uma aflição mais profunda e típica da infância: a sensação de estar preso num mundo hostil onde há o bem e o mal, com regras tão complexas que não conseguimos cumpri-las”. Estamos, aliás, em território que parece ser alimento para a construção do intemporal Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, com um negrume que poderia ser dele primo direito: “Eis a mais importante e duradoura lição da minha infância: eu estava num mundo em que não tinha a possibilidade de ser bom. E a dupla tareia foi um ponto de viragem, pois deu-me a primeira visão clara do ambiente duro para o qual fora epurrado. A vida era mais terrível do que imaginara”.
Esse ambiente duro é retratado por Orwell através de uma crítica aos mecanismos do poder e da autoridade, aos métodos e aos conteúdos do ensino da época – e à sua perpetuação -, à incúria em relação à saúde e à limpeza, isto numa “escola cara e snobe que estava no processo de se tornar ainda mais cara e snobe” – uma escola que havia decidido adoptar o mesmo sistema classista da sociedade inglesa, em que o tratamento e o índice de atenção dispensada seriam dados segundo a conta bancária ou o nome de família. Ou, ainda, o puritanismo sexual, o culto do desporto e “um pavor quase neurótico da pobreza”.
Uma viagem às origens de George Orwell, aqui sob a forma de novela gráfica, desenhada a preto e branco e envolta em capa dura no formato álbum da BD clássica, que é sobretudo um mergulho em memórias que não lhe trouxeram mais do que desgosto. Talvez os “terrores irracionais e equívocos lunáticos” de que fala Orwell tenham sido, na viagem solitária que fez entre os 8 e os 13 anos de idade, a semente para o nascimento de uma ficção que esteve sempre em oposição ao totalitarismo.
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