Se, empurrados por um quizz literário ou simplesmente porque sim, tivéssemos de escolher para Charles Bukowski um cognome, à semelhança do que acontecia em tempos com a realeza, talvez a escolha fosse esta: o Maior. Só mesmo ele, poeta maldito das letras, poderia ter escrito “Sobre o Amor” (Alfaguara, 2021) com a desenvoltura de um bartender, atirando garrafas ao ar, espremendo citrinos e criando, com doses etílicas de amargura e emoção, o cocktail – ou poema – perfeito.
Apesar de não estarmos num romance habitado Henry Chinaski, o anti-herói – e alter-ego de Bukowski – que junta o alcoolismo misantrópico a uma vida laboral e carnal de vagabundo, os temas destes poemas são os mesmos encontrados nos romances deixados por Bukowski para a posteridade: entrega excessiva, narcisismo extremo, muita miséria e alguma redenção.
Nesta viagem em verso de menos de 200 páginas, com muita grosseria, pornografia e quase sempre ressacado, Bukowski usa todos os seus truques e encantamentos, seja descrevendo o que é a saudade – “as horas de amor/neste quarto/ainda lançam sombras” -, apresentando-nos as muitas mulheres que conheceu – e amou -, poupando na ida ao psiquiatra -”é provavelmente uma merda de infância enraizada/que me torna vulnerável, pensei” – ou misturando, como poucos, o amoroso com o rude – “tantos dedos por entre os meus cabelos/tantas mãos agarrando-me os tomates/tantos sapatos de viés sobre o tapete/do meu quarto”.
Uma lição existencial de Mr. Bukowski que, a certa altura, nos brinda com aquela que poderá ser uma das melhores definições de amor, capaz de rivalizar com os ensinamentos da neo-zelandesa Kim Grove que, em 1967, criou um casal de crianças que nos mostrou de forma inocente o que era isso do amor.
o amor é uma luz
a correr de noite pelo nevoeiro
o amor é uma carica de cerveja
pisada a caminho
da casa de banho
o amor é a chave de casa perdida
quando estás bêbado
o amor é o que acontece
uma vez a cada dez anos
o amor é um gato esmagado
o amor é o velho ardina
na esquina
que já desistiu
o amor é o que tu pensas que a outra
pessoa destruiu
o amor é o que desapareceu
na época dos vasos de guerra
o amor é o telefone a tocar,
a mesma voz ou outra voz
mas nunca a voz
certa
o amor é traição
o amor é a incineração
de vagabundos num beco
o amor é ferro
o amor é a barata
o amor ´´e uma caixa de correio
o amor é a chuva no telhado
de um velho hotel
em Los Angeles
o amor é o teu pai num caixão
(o teu pai que te odiava)
o amor é um cavalo com uma pata
partida
a tentar levantar-se
perante uma assistência
de 45 000 pessoas
o amor é o modo como fervemos
como a lagosta
o amor é tudo aquilo que dissemos
que não era
o amor é a pulga que não consegues
encontrar
e o amor é uma melga
o amor são 50 granadieors
o amor é uma arrastadeira
vazia
o amor é uma insurreição em San Quentin
o amor é um manicómio
o amor é um burro parado
numa rua de moscas
o amor é um banco de bar
vazio
o amor é um filme do desastre do Hindenburg
a encarquilhar aos pedaços
um momento que ainda grita
o amor é Dostoiévski diante
da roleta
o amor é o que rasteja
pelo chão
o amor é a tua mulher a dançar
nos braços de um estranho
o amor é uma velha
a roubar um pedaço
de pão
e o amor é uma palavra
usada demasiadas vezes
e demasiado cedo.
A tradução deste e de todos os poemas esteve nas boas mãos de Valério Romão.
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