A vida da escritora chinesa Karoline Kan é um crime: à luz da política do filho-único, o seu nascimento em 1989 seria proibido, pois os pais tinham tido já o seu irmão. A mãe, Shumin, teve de usar muita tenacidade e engenho para jogar um jogo do gato e do rato com as autoridades chinesas, e não escapou a uma pesada multa.
Lemos “Sob Céus Vermelhos” (Quetzal, 2020) como se fosse um romance distópico de Margaret Atwood – na China dos anos 80, as mulheres eram policiadas constantemente com exames e ecografias, muitas vezes levadas à força por funcionários do Governo, obrigadas a fazer abortos e esterilizações forçadas. Os homens não tinham alternativa senão comer e calar.
Não espanta que a autora seja uma feminista convicta, influenciada pelas histórias das mulheres que a precederam. “Eram assim, as voluntariosas mulheres da minha família”, conta. “Essas mulheres tinham-me animado a seguir em frente, a não ter medo e a confiar nas minhas decisões, como haviam feito para que eu existisse”.
Kan relata o seu arco desde o nascimento numa modesta comunidade rural, até se tornar uma jovem cosmopolita, passeando de vestido de noite pelos eventos elegantes de Pequim. Quando estava na escola primária, a família mudou-se para uma cidade próxima, muito por causa da determinação incansável da sua mãe. Discriminados como migrantes, tiveram de batalhar para se afirmarem, mas o risco acabaria por compensar: Karoline foi aceite por uma universidade de Pequim, ponto de partida para uma bem-sucedida carreira no jornalismo.
A protagonista desta autobiografia é, de certa forma, a própria China: governada com mão de ferro pelo Partido Comunista Chinês desde 1949, tem uma longa e sinuosa história, com inúmeros episódios de má memória: a Grande Fome, causada pelas políticas do Presidente Mao Tsé-Tung, no final dos anos 50; a Revolução Cultural e os temíveis Guardas Vermelhos nos anos 60 e 70; a política do filho único, implementada em 1980 como controlo da natalidade e que durou até 2015; a constante repressão e prisão de dissidentes políticos e religiosos – uma lista que não acaba, até à actual pressão sobre Hong Kong, com vista a restringir a autonomia e a liberdade no território.
“Sob Céus Vermelhos” não esconde esta envolvente política. Mas o seu valor reside, sobretudo, em abrir uma janela que deita para a vida das gentes normais sob o regime chinês. Com base na história de três gerações da sua própria família, a autora cobre com mão de romancista as convulsões, costumes e mentalidades da China, suspensa num pêndulo entre tradição e modernidade.
“A verdadeira China – bela e feia, bizarra e familiar, alegre e triste, progressista e retrógrada ao mesmo tempo” escreve a autora. “Aprendi a estimar cada faceta dela”.
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