A lista mental de desejos do adolescente a quem chamam Shy começa assim: “Quer deixar de ter altos e baixos. Quer parar a mente. Desligá-la. Quer dormir dias a fio sem que nenhum sonho o perturbe”. Aos 15 anos, em plena década de 1990, Shy está cansado do seu próprio desassossego, dos terrores nocturnos e da sensação constante de não conseguir encaixar no mundo e corresponder às expectativas. O seu passado – marcado por distúrbios comportamentais diversos, explosões de violência e episódios de depressão – conduziu-o até Last Chance, uma escola pouco convencional, que ocupa uma antiga mansão rural alegadamente assombrada, e se dedica à reintegração de jovens problemáticos. No presente, a possibilidade de Last Chance ser encerrada confronta-o com um futuro que lhe parece insuportável, e a sua reacção é sair à socapa uma noite, enveredando pelo bosque, em direcção a um lago, transportando um charro, um walkman, a cassete de que mais gosta e uma mochila cheia de pedras, “absurdamente pesada”, que lhe faz doer imenso os ombros.
“Shy” (Elsinore, 2023), do britânico Max Porter, é o relato exuberantemente modernista dessa noite imensa e dolorosa, como uma “tacada que despedaça memórias confusas”. Na mente do protagonista ecoam não só os seus próprios pensamentos, mas também palavras da mãe e do padrasto, dos professores, de colegas, de antigos amigos, do narrador de um documentário sobre Last Chance, e até de figuras imaginárias. No papel, estes fragmentos assumem dimensões e tipos de letra variáveis, numa heterogeneidade representativa de diferentes estilos de prosa e linhas temporais, aqui colocada ao serviço de uma narrativa que é tudo menos linear, mas permanece sempre surpreendentemente fluida.
Cada fragmento é como um traço no desenho do percurso de Shy até ao momento em que o conhecemos, todos eles conjugados numa teia de azar e más decisões que chega a ser comovente. O autor consegue transmitir não só as angústias do jovem – a confusão por nem sempre se compreender a si próprio, a tristeza pela irreversibilidade dos seus actos – mas também o desespero da mãe e do padrasto, que já não sabem como lidar com ele. A profundidade da sua relação com a música – “a coisa por que sempre anseia, que nunca o desapontará” – também é descrita de uma maneira belíssima: sente-a com uma intensidade que não ousa exprimir por palavras e ama-a porque ela cumpre as suas promessas, acolhe-o sem reservas e deixa-o em segurança dentro do som, sem barreiras nem manhas, livre de “artimanhas cruéis e pequenas acumulações de favores devidos, desconsiderações subentendidas e insinuações de ameaças e contendas que fervem em lume brando”.
Porter não oferece explicações definitivas quanto à razão de Shy ser como é, nem propostas bem intencionadas quanto à forma como a família e a sociedade em geral devem tratar rapazes como ele. Também não atenua toda a violência praticada pelo protagonista, aparentemente incapaz de parar de causar sofrimento àqueles que o amam. Mas, apesar de tudo isso – ou precisamente por causa disso -, podemos classificar este romance curto como um exercício notável de empatia.
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