São uma das bandas mais icónicas e influentes da história da música rock. A sua sonoridade particular, uma tapeçaria fina composta por elementos de blues, rock, jazz e psicadelismo, ajudou a definir a música popular do final do anos sessenta e início da década de setenta. Referimo-nos aos californianos The Doors. Um dos grandes responsáveis pelo seu êxito, o enigmático vocalista Jim Morrison, era um portento de carisma: poeta e letrista fabuloso, instituiu um arquétipo de frontman que ainda hoje influencia e serve de modelo a muito boa gente nas lides da música moderna.
Mas os Doors não se resumiam a Morrison. A dois passos do cantor, de guitarra a tiracolo, estava o homem de quem se dizia que ostentava o pior penteado da história do rock ‘n’ roll: Robby Krieger. O guitarrista, nascido em Los Angeles, na Califórnia, em 1946, começou a estudar guitarra muito jovem, e juntou-se aos Doors em 1965. Depressa se afirmou como uma parte essencial do som do grupo, sendo de sua autoria a maior parte dos serpenteantes riffs de guitarra e solos das músicas mais lendárias. “Set The Night On Fire — Viver, Morrer e Ser Guitarrista nos The Doors” (Grupo Narrativa, 2022) relata a história da banda a partir da sua perspectiva, lançando luz sobre a mitomania de muitos dos acontecimentos que pontuaram a carreira dos californianos.
O livro desenvolve-se com uma ordem deliberadamente não cronológica: os capítulos sucedem-se como breves histórias, contadas de forma leve. No entanto, à medida que Krieger vai desfiando os segmentos da narrativa, as suas reflexões pintam um quadro cristalino das relações humanas em acção. Krieger foi o último membro dos Doors a contar a sua história em livro, e optou por, ao arrepio das outras biografias, contá-la sem muito melodrama — e, pelo caminho, com algumas bicadas aos livros do teclista Ray Manzarek e do baterista John Densmore.
O livro ilustra bem as dinâmicas individuais e de grupo envolvidas no dia-a-dia dos Doors: a relação cúmplice, por vezes conturbada, entre Krieger e Morrison, mas também a de ambos com Manzarek e Densmore. Krieger recorda os altos e baixos da carreira, desde o interesse obsessivo pela guitarra até ao retrato do camarada Morrison como figura dúplice. São fascinantes os vislumbres da personalidade do mítico vocalista: podia ser um cavalheiro gentil e conciliatório num momento, um louco imprevisível, perigoso e auto-destrutivo no seguinte (especialmente sob o efeito de um sortido de álcool e/ou drogas).
Krieger teve uma longa relação de trabalho e de cumplicidade com Jim Morrison, por isso é valiosa também a sua experiência do vocalista como pessoa, no geral, tranquila e generosa, que põe em perspectiva a caricatura de extravagância constante pela qual ficou célebre. A experiência do autor com comportamentos ditos pouco normais, inclusivamente dentro da própria família — com a sua mãe e o seu irmão gémeo —, talvez estejam por trás da sua aceitação zen da personalidade complexa de Morrison.
Krieger não se furta aos problemas de droga e álcool que assolaram todos os membros da banda: cada um dos quatro tomou parte numa dança macabra entre sucesso e descalabro, em cada passo da viagem. Escreve candidamente sobre a longa batalha com a heroína, não deixando de fora os pormenores escabrosos. À medida que vai avançando na narrativa, desde a primeira residência no London Fog, em Los Angeles, até à do Whisky a Go Go, em Sunset Strip, passando pelas gravações dos diversos álbuns, Krieger, que escreveu o livro com a ajuda de Jeff Alulis, vai criando suspense sobre como será a sua visão dos momentos mais polémicos da banda.
Quando relata finalmente acontecimentos como os de New Haven e os de Miami, o discurso de Krieger não os dramatiza. Mostra sempre, de forma lúcida, como viveu o rol de circunstâncias, ainda hoje controversas, à volta da banda. Pelos seus olhos, vemos como os Doors evoluíram até se tornarem «lendas fora-da-lei, a fervilhar de credibilidade contra-cultural». Ressalta até do livro alguma inocência do guitarrista, acerca de como os Doors puderam servir de rastilho para tanto rebuliço e caos.
Krieger não esconde o rancor crescente que foi tomando conta da sua relação com Manzarek e Densmore, e que acabaria por colocá-los em lados opostos de um tribunal. E o que salta à vista é a ausência de amargura — o guitarrista declara repetidamente os sentimentos de amizade que continuaram a ligar, inexoravelmente, os três músicos. A imagem de Robby Krieger que se cristaliza nesta obra fascinante é a de alguém emocional e espiritualmente apaziguado com as suas memórias.
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