Essex é uma região de Inglaterra, no sudeste do Reino Unido, nela se situando uma das cidades mais antigas e uma das maiores zonas balneares do Reino Unido. Sarah Perry, natural desta região, tira partido do conhecimento que possui da geografia, da história e da cultura da zona, produzindo um romance com uma narrativa composta por mais que um núcleo. Jovem escritora com progressivo reconhecimento em terras de Sua Majestade como noutros países, em “Serpente do Essex” (Minotauro, 2017) Sarah Perry serve-nos um conto que dá atenção aos detalhes e ao recorte de episódios interactivos, responsáveis por uma sensação de infinidade de possibilidades na construção da história explorada. Quem lê a “Serpente do Essex” entra facilmente num processo de formulação de imagens mentais, de construção de cenários hipotéticos e de manifestação na nossa memória de diferentes maneiras de objetivação da imaginação.
Os ingredientes estão reunidos. Mistério: tudo começa com uma morte por explicar, junto a um lago, num cenário pouco evidente onde é encontrado um corpo com uma expressão no mínimo estranha; Retrato: uma sociedade, Londres, 1893, com detalhes generosos sobre como viviam e se movimentavam as classes sociais, na cidade e fora dela. Pormenores sobre o quotidiano de Cora Seaborne, viúva, liberta de um casamento que aniquilara a sua identidade, e de todos os que directa e indirectamente gravitam à sua volta; Superstição: uma criatura imprecisa, gigantesca, “o Problema” terá ressurgido na vida das gentes de Essex, oculta nas águas de um lago, potencialmente responsável por acontecimentos ambíguos e improváveis, num exercício perfeito de imaginação fantasiosa.
Fé, razão e liberdade, uma tríade aparentemente incompatível mas perfeitamente entrosada na forma como a protagonista da história, Cora Seaborne, pretende explorar o mistério que ensombra Essex, afrontando William Ransone, vigário, casado com a bela e doente Stella. Cora e William, “cada um aguça o intelecto no intelecto do outro; são à vez a lâmina e a pedra de amolar”.
Existirão mistérios ou apenas coisas que ainda não percebemos? Para os protagonistas desta história, mesmo as pessoas vulgares ocultam desideratos não confecionáveis, que vão desde as crenças que suportam o que fazem aos desejos que ocultam – e os interesses que prosseguem.
A dialéctica entre misticismo e ciência é permanente, colocando o reverendo William Ransone numa verdadeira encruzilhada de desconfiança ao pretender controlar a lenda que dá vida ao “problema”, a serpente do Essex, ao mesmo tempo que suspeita dos ganhos da medicina mais avançada como resposta aos traumas da filha e à doença da esposa. Neste contexto, a hipnose surge como experiência ainda incipiente e alvo de desconfiança.
Numa narrativa paralela que acaba por confluir para o desfecho central, toma-se ainda contacto com o ódio e o desejo de vingança de Samuel Hall dirigido a Edward Burton, alimentado pelo orgulho ferido do primeiro, na sequência da depreciação exercida pelo segundo.
Toda a leitura exige um esforço de imaginação. Em “Serpente do Essex”, a tarefa está facilitada pela bem conseguida conciliação da autora entre criatividade e factualidade, existindo força nas personagens criadas.
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