Em “Serpe – As Três Aguas do Encanto” (The Poets and Dragons Society, 2018) testemunhamos uma viagem pela consciência feminina que nos revela a cobra (o Dragão das Sete Cabeças, a serpente, ou, em linguagem poética, a serpe) como narradora da génese e raiz da fertilidade.
Ana Sofia Paiva, nascida em Lisboa a 13 de Junho de 1981, é formada em Teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2001) e pós-graduada em Promoção e Mediação da Leitura na Universidade do Algarve (2012). Contadora de histórias e investigadora de contos populares de tradição oral, dedica-se à poesia como ofício de culto. Esta obra, que não respeita o acordo ortográfico de 1990 por opção da autora, é o seu primeiro livro publicado.
Estamos perante um poema que não peca por falta de originalidade – é deveras característico.
O contemporâneo, prezando-se como tal, faz uso de métrica irregular (quantidade alterável de sílabas métricas). Tal acontece com esta obra “moderna”, que também detém estrofes com números de versos sempre diferentes. Não se adivinha qualquer padrão. É tudo uma “salganhada” de rimas e métricas desreguladas. Não nos atrevemos a aprofundar esta temática, uma vez que o colocar em “gavetas” não combina com estes versos que se sentem quase infindáveis: o fim do verso parece não existir, havendo uma rápida transgressão em modo “contínuo” para o verso que se segue. Temos rimas consoantes (como “urgência” e “independência”), que se verificam na maioria enquanto encadeadas/interiores e algumas rimas toantes. Quando usadas (porque algo raras), as rimas são tendencialmente pobres (rima entre palavras da mesma classe gramatical), e não ricas. A quantidade de versos soltos/brancos é incontável: rimar é para os antigos, os tradicionais, os chatos.
O ritmo nesta obra, considerando que não é determinado pela rima que se mostra versátil e “inapanhável”, é determinado pelo poeta: o sujeito poético traz uma voz particular que estabelece o equilíbrio (que vem e vai com o vento) e a opção de cada uma das sílabas resulta numa cadência muito acentuadamente ritmada.
A intensa repetição de vocábulos transmite, como é evidente, uma maior força expressiva: uma árvore de natal cheia de bolas (assonâncias e aliterações), estrelas (anáforas e epístrofes), anjos (poliptotos) e outras decorações insistentes que muito contribuem para a “forma sonora do poema” na nossa mente. O “itálico” e certos “negritos” por entre o poema sabem bem, porque funcionam como iluminação brilhante (e não de pulsação intermitente) que nos chama a atenção para pormenores (como em “a morte não existe” ou “por bem fazer, mal haver: sempre foi e há-de ser”).
Ana Sofia Paiva guia-nos por entre um túnel- enquanto caminhamos, não sabemos para onde vai, se tem final e se, caso haja desenlace, temos luz ou vácuo. Como a mesma refere, “poderás compreender tudo, ou quase nada”. Neste túnel somos avassalados por cheiros bons e maus e, durante a leitura, não nos conseguimos decidir se a fragrância no seu global, afinal, é agradável ou não. Não sabemos o que cheiramos. Isto das coisas fazerem sentido é plenamente aborrecido, tal como o são os antigos, os tradicionais, os chatos.
A parte benigna de ser uma obra “curta” é a de que, na iminência da necessidade de uma releitura para verdadeira (ou somente melhor tentativa de) compreensão, esta, não custa, porque breve. E temos de ler, e reler, e repassar, e avivar. Neste poema estamos perante um quadro durante uma eternidade (temporalmente por nós delimitada), que, nas palavras, se reflecte na incontável necessidade de releitura. Situação complicada para os antigos, os tradicionais, os chatos.
Algumas divagações, que quase se sentem cair do céu, fundem-se em expressões populares como “para sempre no melhor pano cai a nódoa” ou em ideias que se pretendem encardidas como “e é no tempo de toda a espera que tudo existe”. Notamos, e salientamos, um travo constante muito específico de foco (voluntário) no feminino (“Abrirás comigo as colinas / do tal feminino imensurável / a que chamam o paraíso”).
De mencionar e enaltecer, temos a selecção de palavras. Por um lado, temos expressões que combinam com a idade da poetisa e a sua contemporaneidade (como “tudo tranquilo”). Por outro, predominam os vocábulos de uma eloquência notável, um tanto bizarra (os antigos, os tradicionais, os chatos não percebem nada desta magia das palavras “pipis”). Adverte-se à conveniência da presença de um dicionário: ainda que seja perfeitamente plausível uma leitura com o desconhecimento de certos termos, nesta obra, e em partes da mesma, os túneis são tão pretos que o descontrolo dos conceitos não são “terra segura”.
Muitos são os sentimentos que nos picam, e picaram, quanto a este poema. Denotam-se tons, em certos momentos, de revolta, ânsia de rebelião (“a tudo se está sujeito neste universo de brinquedo”), e, noutros, uma taciturnidade com um “bicho energético” de origem indefinida (“Dei-te todas as minhas águas”).
As ilustrações de LigeiramenteCanhoto, neste poema, são uma absoluta delícia. Com toques de infantilidade, o ridículo da simplicidade é encantador, místico, mais do que deleitante e apela à leitura pela transmissão de calma. O subentendido de muitas das ilustrações dá beleza e vida a esta obra.
Maravilhosa edição – prazenteira à vista e ternurenta para o coração da leitura – porque é essencial colocar luzes numa árvore de Natal, que se pode crer despida.
Aconselha-se a leitura de “Serpe- As três águas do encanto” aos humanos com feminilidade (desta vez respeitando as questões sexistas e as sequentes inesgotáveis temáticas perigosas da actualidade) que precisam de águas para hidratar e agitar o cérebro, palavras para encher uma cabeça descarregada (num sentido peculiar) e passagens para partilhar nas redes sociais. Como se presume captado, não se recomenda aos antigos, aos tradicionais, aos chatos.
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