• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
Serpe - As Três Águas do Encanto, Deus Me Livro, The Poets and Dragons Society, Ana Sofia Paiva
Mil Folhas 0

“Serpe – As Três Águas do Encanto” | Ana Sofia Paiva

Por Lalma Domus · Em 24/12/2018

Em “Serpe – As Três Aguas do Encanto” (The Poets and Dragons Society, 2018) testemunhamos uma viagem pela consciência feminina que nos revela a cobra (o Dragão das Sete Cabeças, a serpente, ou, em linguagem poética, a serpe) como narradora da génese e raiz da fertilidade.

Ana Sofia Paiva, nascida em Lisboa a 13 de Junho de 1981, é formada em Teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2001) e pós-graduada em Promoção e Mediação da Leitura na Universidade do Algarve (2012). Contadora de histórias e investigadora de contos populares de tradição oral, dedica-se à poesia como ofício de culto.  Esta obra, que não respeita o acordo ortográfico de 1990 por opção da autora, é o seu primeiro livro publicado.

Estamos perante um poema que não peca por falta de originalidade – é deveras característico.

O contemporâneo, prezando-se como tal, faz uso de métrica irregular (quantidade alterável de sílabas métricas). Tal acontece com esta obra “moderna”, que também detém estrofes com números de versos sempre diferentes. Não se adivinha qualquer padrão. É tudo uma “salganhada” de rimas e métricas desreguladas. Não nos atrevemos a aprofundar esta temática, uma vez que o colocar em “gavetas” não combina com estes versos que se sentem quase infindáveis: o fim do verso parece não existir, havendo uma rápida transgressão em modo “contínuo” para o verso que se segue. Temos rimas consoantes (como “urgência” e “independência”), que se verificam na maioria enquanto encadeadas/interiores e algumas rimas toantes. Quando usadas (porque algo raras), as rimas são tendencialmente pobres (rima entre palavras da mesma classe gramatical), e não ricas. A quantidade de versos soltos/brancos é incontável: rimar é para os antigos, os tradicionais, os chatos.

O ritmo nesta obra, considerando que não é determinado pela rima que se mostra versátil e “inapanhável”, é determinado pelo poeta: o sujeito poético traz uma voz particular que estabelece o equilíbrio (que vem e vai com o vento) e a opção de cada uma das sílabas resulta numa cadência muito acentuadamente ritmada.

A intensa repetição de vocábulos transmite, como é evidente, uma maior força expressiva: uma árvore de natal cheia de bolas (assonâncias e aliterações), estrelas (anáforas e epístrofes), anjos (poliptotos) e outras decorações insistentes que muito contribuem para a “forma sonora do poema” na nossa mente. O “itálico” e certos “negritos” por entre o poema sabem bem, porque funcionam como iluminação brilhante (e não de pulsação intermitente) que nos chama a atenção para pormenores (como em “a morte não existe” ou “por bem fazer, mal haver: sempre foi e há-de ser”).

Ana Sofia Paiva guia-nos por entre um túnel- enquanto caminhamos, não sabemos para onde vai, se tem final e se, caso haja desenlace, temos luz ou vácuo. Como a mesma refere, “poderás compreender tudo, ou quase nada”. Neste túnel somos avassalados por cheiros bons e maus e, durante a leitura, não nos conseguimos decidir se a fragrância no seu global, afinal, é agradável ou não. Não sabemos o que cheiramos. Isto das coisas fazerem sentido é plenamente aborrecido, tal como o são os antigos, os tradicionais, os chatos.

44122156_924233337767289_2977938475447222272_oA parte benigna de ser uma obra “curta” é a de que, na iminência da necessidade de uma releitura para verdadeira (ou somente melhor tentativa de) compreensão, esta, não custa, porque breve. E temos de ler, e reler, e repassar, e avivar. Neste poema estamos perante um quadro durante uma eternidade (temporalmente por nós delimitada), que, nas palavras, se reflecte na incontável necessidade de releitura. Situação complicada para os antigos, os tradicionais, os chatos.

Algumas divagações, que quase se sentem cair do céu, fundem-se em expressões populares como “para sempre no melhor pano cai a nódoa” ou em ideias que se pretendem encardidas como “e é no tempo de toda a espera que tudo existe”. Notamos, e salientamos, um travo constante muito específico de foco (voluntário) no feminino (“Abrirás comigo as colinas / do tal feminino imensurável / a que chamam o paraíso”).

De mencionar e enaltecer, temos a selecção de palavras. Por um lado, temos expressões que combinam com a idade da poetisa e a sua contemporaneidade (como “tudo tranquilo”). Por outro, predominam os vocábulos de uma eloquência notável, um tanto bizarra (os antigos, os tradicionais, os chatos não percebem nada desta magia das palavras “pipis”). Adverte-se à conveniência da presença de um dicionário: ainda que seja perfeitamente plausível uma leitura com o desconhecimento de certos termos, nesta obra, e em partes da mesma, os túneis são tão pretos que o descontrolo dos conceitos não são “terra segura”.

Muitos são os sentimentos que nos picam, e picaram, quanto a este poema. Denotam-se tons, em certos momentos, de revolta, ânsia de rebelião (“a tudo se está sujeito neste universo de brinquedo”), e, noutros, uma taciturnidade com um “bicho energético” de origem indefinida (“Dei-te todas as minhas águas”).

As ilustrações de LigeiramenteCanhoto, neste poema, são uma absoluta delícia. Com toques de infantilidade, o ridículo da simplicidade é encantador, místico, mais do que deleitante e apela à leitura pela transmissão de calma. O subentendido de muitas das ilustrações dá beleza e vida a esta obra.

Maravilhosa edição – prazenteira à vista e ternurenta para o coração da leitura – porque é essencial colocar luzes numa árvore de Natal, que se pode crer despida.

Aconselha-se a leitura de “Serpe- As três águas do encanto” aos humanos com feminilidade (desta vez respeitando as questões sexistas e as sequentes inesgotáveis temáticas perigosas da actualidade) que precisam de águas para hidratar e agitar o cérebro, palavras para encher uma cabeça descarregada (num sentido peculiar) e passagens para partilhar nas redes sociais. Como se presume captado, não se recomenda aos antigos, aos tradicionais, aos chatos.

[themoneytizer id=”19113-3″]

 

Ana Sofia PaivaDeus Me LivroSerpe - As Três Águas do EncantoThe Poets and Dragons Society

Lalma Domus

Pode Gostar de

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors, Mil Folhas

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista, Mil Folhas

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular, Mil Folhas

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

Sem Comentários

Deixe uma opinião Cancelar

Siga-nos aqui

Follow @Deus_Me_Livro
Follow on Instagram

Mil Folhas

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors,

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

    08/05/2025
  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista,

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

    08/05/2025
  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular,

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

    07/05/2025
  • Dentro da Tenda, Lucie Lučanská, Deus Me Livro, Crítica, Planeta Tangerina,

    “Dentro da Tenda” | Lucie Lučanská

    07/05/2025
  • Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria, Mariana Enriquez, Deus Me Livro, Crítica, Quetzal,

    “Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria” | Mariana Enriquez

    30/04/2025
Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

Archives

  • May 2025
  • April 2025
  • March 2025
  • February 2025
  • January 2025
  • December 2024
  • November 2024
  • October 2024
  • September 2024
  • August 2024
  • July 2024
  • June 2024
  • May 2024
  • April 2024
  • March 2024
  • February 2024
  • January 2024
  • December 2023
  • November 2023
  • October 2023
  • September 2023
  • August 2023
  • July 2023
  • June 2023
  • May 2023
  • April 2023
  • March 2023
  • February 2023
  • January 2023
  • December 2022
  • November 2022
  • October 2022
  • September 2022
  • August 2022
  • July 2022
  • June 2022
  • May 2022
  • April 2022
  • March 2022
  • February 2022
  • January 2022
  • December 2021
  • November 2021
  • October 2021
  • September 2021
  • August 2021
  • July 2021
  • June 2021
  • May 2021
  • April 2021
  • March 2021
  • February 2021
  • January 2021
  • December 2020
  • November 2020
  • October 2020
  • September 2020
  • August 2020
  • July 2020
  • June 2020
  • May 2020
  • April 2020
  • March 2020
  • February 2020
  • January 2020
  • December 2019
  • November 2019
  • October 2019
  • September 2019
  • August 2019
  • July 2019
  • June 2019
  • May 2019
  • April 2019
  • March 2019
  • February 2019
  • January 2019
  • December 2018
  • November 2018
  • October 2018
  • September 2018
  • August 2018
  • July 2018
  • June 2018
  • May 2018
  • April 2018
  • March 2018
  • February 2018
  • January 2018
  • December 2017
  • November 2017
  • October 2017
  • September 2017
  • August 2017
  • July 2017
  • June 2017
  • May 2017
  • April 2017
  • March 2017
  • February 2017
  • January 2017
  • December 2016
  • November 2016
  • October 2016
  • September 2016
  • August 2016
  • July 2016
  • June 2016
  • May 2016
  • April 2016
  • March 2016
  • February 2016
  • January 2016
  • December 2015
  • November 2015
  • October 2015
  • September 2015
  • August 2015
  • July 2015
  • June 2015
  • May 2015
  • April 2015
  • March 2015
  • February 2015
  • January 2015
  • December 2014
  • November 2014
  • October 2014
  • September 2014
  • August 2014
  • July 2014
  • Contacto