Parte das críticas que li a respeito de “Serotonina” (Companhia das Letras, 2019) soava-me fruto de uma leitura, com o devido perdão do pleonasmo, literal do livro, ou até mesmo de uma leitura parcial, no sentido estrito mesmo, de o leitor não ter ido até a última página.
O que é compreensível.
Afinal, a companhia de Florent-Claude Labrouste não é o que se pode chamar de agradável. Longe disso. A intragável personagem de Michel Houellebecq ostenta os predicados nada lisonjeiros de um homem tóxico, para além do sexista padrão e do assediador contumaz.
Atravessar as páginas de Serotonina requer, portanto, aceitar o desafio proposto por Houellebecq, de se calçar o sapato deste homem que agoniza no mesmo passo que padece a espécie de macho que representa.
Em busca de paz – não necessariamente de cura –, Florent aceita tomar uma droga à base do componente que empresta o nome ao livro, um medicamento que promete a estabilidade do humor em troca da diminuição – ou até mesmo da ausência total – da libido.
Aí reside a provocação de Houellebecq: se todo o mal deste homem tóxico se concentra na libido desenfreada, o que aconteceria se subitamente a fonte dessa pulsão secasse?
“Serotonina” transcorre em ritmo de um road book, com o leitor à boleia de um fantasmal Florent, numa viagem ao mesmo tempo pelo passado e presente da personagem e da própria França, sem a pretensão de se esboçar um futuro para ambos.
Neste tour de force, Florent esbarra em outros tipos iguais a ele: parte homem, parte besta, minotauros presos em seus próprios labirintos. Não se trata, portanto, de uma viagem tranquila – nunca o é em se tratando de Houellebecq – , mas sempre de uma viagem necessária.
No fim, a questão que cabe ao leitor responder é se há droga alguma nesta vida capaz de dar conta de uma droga de vida.
1 Commentário
Uauuu. A leitura não deve ser fácil. Mas a crítica elucidou muito o andar da carruagem.