“A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. […] Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.”
Estas palavras foram escritas pelo Padre António Vieira no século XVII, mas poderiam tê-lo sido hoje, visto que não perderam pertinência. O texto de onde foram extraídas, intitulado “Sermão de Santo António aos Peixes” (Guerra & Paz, 2020), foi pregado na cidade brasileira de S. Luís do Maranhão em 1654, por ocasião do aniversário da morte de Santo António, a 13 de Junho, tendo desde então sido objecto de várias edições. A mais recente, datada de 2020, é da responsabilidade da Guerra e Paz e inclui uma excelente nota introdutória, bem como anexos com mais informação útil para uma adequada compreensão do texto principal.
O sermão, enquanto discurso argumentativo sobre um assunto religioso, era um género literário corrente no século XVII. Segundo os ideais barrocos, devia apelar à imagem, utilizando a ironia e a sátira para cativar os ouvintes, consciencializá-los para um problema e levá-los à acção.
Assim sendo, o Padre António Vieira, que nasceu em Lisboa mas partiu ainda jovem para o Brasil, onde se destacou como missionário da Companhia de Jesus e defensor dos direitos dos índios, combina este género com os seus reconhecidos dotes oratórios para criticar o comportamento dos colonos portugueses, recorrendo para isso ao exemplo de Santo António: tal como este decidiu pregar aos peixes após ter sido rejeitado pelos hereges de uma cidade italiana, António Vieira volta-se para os peixes porque a sua pregação não modifica os seres humanos.
Todo o sermão é uma alegoria, na qual diferentes espécies de peixes representam virtudes e defeitos humanos. O tema central é a exploração humana decorrente das desigualdades sociais, mas também são abordadas outras questões, como a cobiça e as guerras vãs, em que uns são iludidos para morrerem pelos interesses de outros.
Os anexos que enriquecem esta edição correspondem a uma cronologia da vida do autor, uma síntese das características atribuídas aos peixes (sendo o polvo incluído entre eles) e uma carta ao Rei Afonso VI, onde o prelado protesta contra as “injustiças e tiranias” praticadas no Brasil sobre os índios, sugerindo medidas para combatê-las que até poderiam ser benéficas para o país, como insinua no seguinte excerto: “A causa principal de se não perpetuarem as coroas nas mesmas nações e famílias é a injustiça […] e entre todas as injustiças nenhumas clamam tanto ao céu como as que tiram a liberdade aos que nasceram livres e as que não pagam o suor aos que trabalham”.
Em vida, o autor foi ora homenageado, ora vilipendiado, chegando a ser encarcerado pela Inquisição. Hoje, continua a ser alvo de controvérsia, elogiado por uns como humanista e denunciado por outros como representante do colonialismo europeu. Resta-nos ler os seus textos e retirarmos as nossas próprias conclusões.
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