É um daqueles acontecimentos que, por cá, nos fazem lembrar Fernando Pessoa. De tempos a tempos surge, para contentamento de muito bom leitor, mais um inédito de Roberto Bolaño, retirado de um arquivo que, espera-se, ainda vá dar uma série de edições.
No prefácio a “Sepulcros de Cowboys” (Quetzal, 2018), o novo achado, Juan Antonio Masoliver Ródenas fala dos contos do escritor chileno não como fragmentos mas, antes, como peças de um puzzle. Ou, também, de uma “escrita itinerante”, mais interessada no caminho do que no destino. Não poderia ser mais verdadeiro. Basta recordar, por exemplo, que a definição do que representa “2666”, o seu livro mais lido, está em “Os Detectives Selvagens”, o seu livro mais incrível. E que Arturo Belanõ, para além de ter tido existências com outros nomes, é nada mais nada menos que o alter-ego de Bolaño, uma personagem que está entre aquilo que de melhor a literatura do continente americano nos ofereceu.
Para Ródenas, em “Sepulcros de Cowboys” “não tem sentido tentar distinguir se estamos perante três partes independentes ou perante a unidade própria de um romance”. O que é importante, diríamos, será a qualidade da prosa de Bolaño, que conduz o leitor num transe semelhante ao que um encantador de serpentes consegue fazer com o réptil rastejante muito dado às mudanças de pele. Uma espécie de livro dentro do livro, onde podemos seguir o percurso do próprio Bolaño através das datas mostradas ao longo do livro.
“Pátria”, a primeira parte, é composta por vinte textos que atravessam todo o universo da escrita de Bolaño, e que aqui nos mostram coisas como a consciência lacrimosa da primeira paixão, um desenhador que depois de uma pancada na cabeça só via e desenhava o lado direito das coisas, o espectro da morte precoce, o surgimento no céu de um Messerschmitt – um avião do Terceiro Reich -, o golpe militar contra Allende, uma referência à doutora Amalfitano – que estará no centro da intriga de “Os Detectives Selvagens” -, o tráfico de crianças para transplante de órgãos – uma violência que toma conta de uma grande fatia de “2666” – ou, também, a entrada em cena de Rigorín Belano, que mais tarde será Arturo.
Quanto a “Sepulcros de Cowboys”, a segunda parte que dá título ao livro, reúne algumas histórias puramente Bolañescas, seja aquela que refere uma amizade efémera, vivida entre livros e com baldas às aulas, uma ida de cruzeiro meio à sorte para a revolução chilena, onde não faltam referências a formas extraterrestres, ou ainda “um pintor e entalhador de virgens” que se vê metido numa história de senhas e contra-senhas, que reserva um final extraordinário: “Perguntávamos, respondíamos, definitivamente perdidos um para o outro”.
“Comédia do Horror de França”, que encerra este livro, leva-nos a percorrer os esgotos de Paris de mão dada com os surrealistas, abordando os eternos temas da escrita de Bolaño: a poesia e a política.
Para se ter uma ideia do caos que se sucedeu à morte de Bolaño e do eterno devir que parece estar associado à sua obra, leiam-se as notas de Carolina López Hernández sobre a consulta feita ao fundo documental do Arquivo Bolaño, guardado no seu domicílio, que envolvem referências a arquivadores com referências como 4/17, 34/5 ou 30/171, que nos fazem pensar que não faltará muito tempo para que um novo coelho se aventure a sair da cartola, indo ao encontro do que lemos a certa altura: “A vida dá muitas voltas, Senhor Belaño, a aventura nunca acaba”. Que este arquivo também nunca acabe.
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