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“Sempre Estrangeira” | Claudia Durastanti

Por Cris Rodrigues · Em 02/03/2022

“A história de uma família assemelha-se mais a uma carta topográfica do que a um romance, sendo a biografia a soma de todas as eras geológicas que atravessámos. Escrevermo-nos a nós significa recordar que nascemos com raiva e fomos uma corrente de lava densa e contínua, antes que a nossa crosta endurecesse e se rachasse para deixar aflorar uma espécie de amor, ou que a força inútil do perdão viesse polir-nos e aplanar todas as nossas depressões. Relermo-nos a nós mesmos significa inventar aquilo por que passámos, identificar cada estrato de que somos compostos: os cristais de alegria ou de solidão no fundo, as consequências de uma memória que se evaporou, tudo aquilo que foi escavado e depois inundado, unicamente para nos darmos conta de que não é verdade que o tempo cure: há uma fratura que nunca será preenchida.”

Classificado,  nas palavras da própria autora, como um romance de consolação e romance-mapa, “Sempre Estrangeira” (Dom Quixote, 2020) é uma tentativa de narrar e reler o passado. E, tão difícil como o passado, será o emprateleiramento deste livro, aspecto que o torna único e tão bom de ler e reler. Por um lado, pela quantidade de frases belíssimas e tão bem compostas; por outro, pelas conclusões tão habilmente tecidas – e que a tanto são transversais. Outro detalhe viciante é a dificuldade de encontrar um fio condutor, o que facilita poder abri-lo em qualquer capítulo e lê-lo quase como um livro de contos. Embora, mesmo chegando ao fim, fiquemos na dúvida sobre tudo o que lemos e o próprio mapeamento familiar. Resta-nos – e não será pouco – deleitarmo-nos com a singularidade da história, em torno do crescimento da própria autora.

“Perceber a razão por que terá renunciado a impor a sua língua privada não é difícil para mim, que tive medo de falar em voz alta durante tanto tempo: a língua gestual é teatral e visível, expõe-nos continuamente. Torna-nos de repente deficientes. Na ausência de gestos, pode-se parecer apenas uma rapariga um pouco tímida e distraída. (…) Parecia simplesmente uma imigrante cheia de erros gramaticais, uma estrangeira.”

Uma boa dose de loucura, realidades efabuladas, universos paralelos e relatos de várias fugas – e outras tantas lutas. Assim cresceu Claudia Durastanti, apoiando-se na auto-suficiência do irmão que, sem guias orientadoras, foi decifrando o que era preciso para crescerem e se articularem com o mundo exterior. Escapando, parcialmente ilesos, às dificuldades de um caminho pouco trilhado.

Sempre Estrangeira, Claudia Durastanti, Crítica, Deus Me Livro, D. Quixote, Dom Quixote “Mas, quando penso nas semelhanças entre os meus pais nas tardes melancólicas e furiosas da sua adolescência, ambos isolados, pondero a hipótese de que o encontro entre duas pessoas não tenha tanto a ver com a predestinação, mas com um mapa biológico que se revela ao apaixonarem-se uma pela outra; descobrindo-se que havia uma inteligência primitiva a governar os nossos corpos e a libertar particulares elementares para o ar antes mesmo de nos encontrarmos.”

“Sempre estrangeira” vai encaixando, de episódio em episódio, o friso cronológico desses destinos, com os quais se pretende relatar a vida desta família tão peculiar e estrangeira. Estrangeira e até “deficiente”, entre eles mesmos e na sua relação com os restantes. Uma família de imigrantes, de gente que se opôs também a catalogações, não tanto pelo fardo da imigração, mais pelo condicionalismo da surdez. E, no meio de tudo isto, cresce uma rapariga, dividida mas não segmentada; livre mas com raízes, tornando-se uma pessoa plena de criatividade – prova disso é este livro indomável, pronto a esmiuçar as diferentes versões que habitam a história de qualquer família.

Já o leitor, rapidamente se esquecerá de querer domar seja o que for entre capítulos, navegando simplesmente pelo brilhantismo daquilo que, na peculiaridade desta família, se diz sobre as famílias de todos nós, revelando ainda mais a mestria da autora que, de algo tão caótico, foi capaz de sintetizar e de recriar, tão habilmente, aquilo que, tantas vezes – nem mesmo adornando -, somos capazes de revelar. Como escreveu Ursula K. Le Guin, “uma coisa é ler sobre dragões, outra é encontrá-los”.

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Cris Rodrigues

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