• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
Segredos Estilhaçados, Hadley Freeman, Casa das Letras, Deus Me Livro, Crítica
Mil Folhas 0

“Segredos Estilhaçados” | Hadley Freeman

Por Pedro Miguel Silva · Em 25/01/2022

Hadley Freeman teve o decoro e o bom senso de não usar, como vem sendo política de mau gosto e  insensibilidade de muito escritor ou selo editorial nos dias que correm, a palavra Auschwitz na capa de “Segredos Estilhaçados” (Casa das Letras, 2021). Mesmo que, como se lê no subtítulo, se trate de uma “história e confissões de uma família judia separada pelo holocausto”.

O livro começou a ser desenhado após a descoberta de uma caixa de sapatos no roupeiro, “atrás de uma pilha de carteiras de pele”, que continha “os segredos que a minha avó conseguira manter durante toda a vida e mais alguns anos após a sua morte”. É a história da avó Sara e das suas várias ramificações na árvore genealógica que Hadley Freeman decidiu contar neste livro, que é também uma história sobre amor, sacrifício e perseverança, assimilação e tradição, abandono e renascimento, sobre a importância de conhecermos o passado para nos aventurarmos no futuro, lembrando que aquilo que nos une é muito mais do que aquilo que a ciência tem para vender.

Hadley Freeman começa, desde logo, por mostrar ao leitor que esta será uma biografia na qual a (boa) Literatura tem um peso importante. Como quando descreve a quase ausência de uma cronologia familiar – “Será que recordo memórias ou são memórias de memórias? Na minha família, a linha que separa ambas nem sempre é bem definida” -, o abismo físico que separava Sara do marido – “Parecia tão francesa quanto o meu avô parecia americano, com a elegância de uma pintura de Renoir, mas com a melancolia de um quadro de Hopper” – ou, ainda, o próprio abismo que sempre a separou da avó, um abismo de certa forma auto-imposto – “…nunca deixou de me parecer triste e a sua tristeza nunca deixou de me perturbar. Por isso nunca permiti que se aproximasse de mim”.

Foi talvez esse vazio, essa relação por cumprir, que motivou Hadley Freeman, já a meio dos seus vinte anos, a tomar a decisão de escrever sobre a sua avó. Ainda que, então, o pretendesse fazer de forma indolor: “Iria escrever acerca da sua relação com a moda”. Algo que mudou com a descoberta dessa caixa, que continha uma série de itens tão incríveis quanto misteriosos, como um telegrama enigmático da Cruz Vermelha ou um desenho assinado pela mão de Pablo Picasso, que levou a algo bem diferente. Um livro que, curiosamente, decorreu na altura da realização do referendo sobre o Brexit e da eleição de Donald Trump. O que, não estando directamente relacionado com os judeus, revela uma mudança política que implicou uma ideia – e políticas – de “distanciamento em relação aos que são designados vagamente por «estranhos»”, um reflexo do crescimento aberto do anti-semitismo que foi recuperado também em muitos lugares da velha Europa.

Segredos Estilhaçados, Hadley Freeman, Casa das Letras, Deus Me Livro, CríticaNuma entrevista recente ao Deus Me Livro, Juan Gabriel Vásquez defendia ser fundamental partir dos dilemas particulares, muitas vezes invisíveis, para chegar à universalidade do pulsar humano, aos acontecimentos fundamentais, entre paradoxos, divisões e contrastes, que animam o ser humano. Algo que, por falta de vontade ou de ferramentas, a História não consegue fazer. É, de certa forma, aquilo que Hadley Freeman faz em “Segredos Estilhaçados”, arranjando forma de acrescentar um ponto ao conto mil vezes contado do Holocausto, seja pelo papel activo que a França desempenhou no extermínio de muitos judeus – e, de forma mais indirecta, até mesmo os Estados Unidos – ou o modo em como, através da sua história familiar, conta também a história universal que muitos judeus da Europa de Leste viveram.

Hadley Freeman transforma esta saga familiar num quebra-cabeças literário, numa empolgante aventura de escavação na qual o leitor participa avidamente, percorrendo três diferentes gerações, um século e duas Guerras Mundiais. O resultado é íntimo e comovente, resultado de uma pesquisa meticulosa, que transforma “Segredos Estilhaçados” num livro de memórias que se lê como um thriller literário. Um dos grandes livros de 2021 com edição nacional.

Casa das LetrasCríticaDeus Me LivroHadley FreemanSegredos Estilhaçados

Pedro Miguel Silva

Pode Gostar de

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors, Mil Folhas

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista, Mil Folhas

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular, Mil Folhas

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

Sem Comentários

Deixe uma opinião Cancelar

Siga-nos aqui

Follow @Deus_Me_Livro
Follow on Instagram

Mil Folhas

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors,

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

    08/05/2025
  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista,

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

    08/05/2025
  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular,

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

    07/05/2025
  • Dentro da Tenda, Lucie Lučanská, Deus Me Livro, Crítica, Planeta Tangerina,

    “Dentro da Tenda” | Lucie Lučanská

    07/05/2025
  • Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria, Mariana Enriquez, Deus Me Livro, Crítica, Quetzal,

    “Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria” | Mariana Enriquez

    30/04/2025
Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

Archives

  • May 2025
  • April 2025
  • March 2025
  • February 2025
  • January 2025
  • December 2024
  • November 2024
  • October 2024
  • September 2024
  • August 2024
  • July 2024
  • June 2024
  • May 2024
  • April 2024
  • March 2024
  • February 2024
  • January 2024
  • December 2023
  • November 2023
  • October 2023
  • September 2023
  • August 2023
  • July 2023
  • June 2023
  • May 2023
  • April 2023
  • March 2023
  • February 2023
  • January 2023
  • December 2022
  • November 2022
  • October 2022
  • September 2022
  • August 2022
  • July 2022
  • June 2022
  • May 2022
  • April 2022
  • March 2022
  • February 2022
  • January 2022
  • December 2021
  • November 2021
  • October 2021
  • September 2021
  • August 2021
  • July 2021
  • June 2021
  • May 2021
  • April 2021
  • March 2021
  • February 2021
  • January 2021
  • December 2020
  • November 2020
  • October 2020
  • September 2020
  • August 2020
  • July 2020
  • June 2020
  • May 2020
  • April 2020
  • March 2020
  • February 2020
  • January 2020
  • December 2019
  • November 2019
  • October 2019
  • September 2019
  • August 2019
  • July 2019
  • June 2019
  • May 2019
  • April 2019
  • March 2019
  • February 2019
  • January 2019
  • December 2018
  • November 2018
  • October 2018
  • September 2018
  • August 2018
  • July 2018
  • June 2018
  • May 2018
  • April 2018
  • March 2018
  • February 2018
  • January 2018
  • December 2017
  • November 2017
  • October 2017
  • September 2017
  • August 2017
  • July 2017
  • June 2017
  • May 2017
  • April 2017
  • March 2017
  • February 2017
  • January 2017
  • December 2016
  • November 2016
  • October 2016
  • September 2016
  • August 2016
  • July 2016
  • June 2016
  • May 2016
  • April 2016
  • March 2016
  • February 2016
  • January 2016
  • December 2015
  • November 2015
  • October 2015
  • September 2015
  • August 2015
  • July 2015
  • June 2015
  • May 2015
  • April 2015
  • March 2015
  • February 2015
  • January 2015
  • December 2014
  • November 2014
  • October 2014
  • September 2014
  • August 2014
  • July 2014
  • Contacto