Ainda falta um terço temporal para que 2019 chegue ao fim, mas não será qualquer exercício de vidência dizer que, no que à Banda Desenhada diz respeito, “Sabrina” (Porto Editora, 2019) irá estar nas posições cimeiras quando as listas de supermercado com os mais castiços do ano começarem a ser escrevinhadas.
Escrita e desenhada por Nick Drnaso, esta novela gráfica alcançou a proeza de ter sido a primeira a ser seleccionada para o Booker Prize, e tem sido levada ao colo por leitores e críticos um pouco por todo o globo.
Trata-se de uma fábula moderna sobre questões como a erosão da verdade, o triunfo das fake news ou o tribunal das redes sociais, tudo embrulhado em papel de conspiração que faz gato-sapato do leitor e o deixa assustado e à nora assim que a última página é virada.
Calvin, um soldado da Força Aérea pouco dado a pôr os pés dentro de um avião, acolhe em sua casa Teddy, um amigo de infância que está a passar um mau bocado desde o desaparecimento da sua namorada um mês atrás. Teddy é um adulto com tiques de criança, que ainda consegue falar menos durante o livro do que as linhas dadas a Eleven na primeira temporada de Stranger Things, e que irá ficar no quarto que pertencia à filha de Calvin, que se separou da mulher algum tempo antes. Uma casa banal, despida, que casa na perfeição com o diálogo surdo que estes dois homens vão travando, evitando-se por detrás de portas fechadas e horários incompatíveis.
É, porém, nas primeiras páginas que reside o outro foco da história, e que constituirá o enigma maior desta novela gráfica. Em Chicago, Sandra chega para uma breve visita aos pais, falando à irmã sobre uma viagem que fez de autocarro – e que lhe abriu os olhos para o lado negro do mundo -, propondo-lhe fazerem juntas uma viagem de bicicleta no Verão, onde deixariam para trás a cidade e arrancariam da tomada a ficha da Internet que comanda as suas – e as nossas – vidas. Uma conversa que, sem o saberem, será a última que terão, pois Sabrina irá desaparecer sem deixar rasto. Sabrina que é, liguem-se os pontos, a namorada desaparecida de Teddy.
Ao longo de duzentas páginas, acompanhamos o horror do desaparecimento de um ente querido através do desespero de Teddy mas, também, o espírito Correio da Manhã, que resulta na divulgação de um vídeo – enviado para diversos canais de televisão e políticos de serviço – de uma atrocidade sangrenta, que vai servir para que se teçam todo o tipo de teorias, se exijam crucificações, e se faça da verdade e da confiança palavras como quaisquer outras do dicionário, numa era como a nossa onde somos conduzidos e manipulados por (des)governos como o de Trump.
O livro está longe de ser uma novela policial, mas Drnaso convida o leitor a construir a sua própria paranóia, lançando-lhe um isco impossível de não engolir. Só faltará mesmo que, tal como nos filmes, coloque na parede da sala um quadro de evidências, unindo os fios de uma história onde há sangue, tiroteios e uma mão invisível que nos empurra para a vertigem da irracionalidade.
Preparem-se para um jogo de verdades e mentiras, de factos e suspeições, numa história carregada de frases onde tomamos o pulso à erosão do mundo: “Enfrentemos os factos. A sociedade encontra-se num estado de anomalia sem saída“. Ou, ainda, “Quando é que tomámos o caminho errado?“. Um livro que nos faz olhar assustados para o espelho, num duelo surdo e enervante, deixando no ar um convite que apetece aceitar sem piscar os olhos: larga a Internet, desliga a televisão e não leias mais jornais.
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