Uma biografia romanceada? Um romance biográfico? Um tributo literário? Chamem-lhe o que quiserem, a verdade é que “Rimbaud, O Viajante e o Seu Inferno.” (Exclamação, 2020), assinado por Ana Cristina Silva, é um extraordinário livro sobre um poeta maior que, num certo dia, decidiu atirar com a escrita às urtigas. Um tipo vaidoso, irascível, inseguro, indecifrável, que a todos arrastou consigo para o vórtice da destruição, até o cancro o ter arrastado para o Inferno quando tinha apenas 37 anos.
Para a posteridade e para a história da literatura deixou algumas obras maiores, e uma história de vida que a escritora portuguesa consegue aqui contar de forma sublime, de forma condensada e “escrita” a várias vozes: as de Madame Rimbaud, Mathilde Verlaine, Paul Verlaine, Isabelle Rimbaud e do próprio Arthur Rimbaud. Pelo meio existem versos, excertos ou citações dos biografados, numa sinfonia literária que oferece a musicalidade e a trepidação de um poema.
Anti-sistema, anti-aburguesamento, anti-convenções, Rimbaud defendia que “a poesia teria de colher a vida não pelo exterior, mas pelo interior, a poesia teria de ser capaz de perturbar e deixar uma marca nos outros, nos espíritos e nas coisas e fazê-lo de forma tão subtil que as palavras parecessem ter aroma, cor e textura. Sim, os poemas deveriam emanar uma luz eterna para que o sofrimento não fizesse desabar os homens”. Algo que o francês cumpriu plenamente, muitas vezes tocado por aquela inspiração divina que muitos dizem não passar de um capricho – ou que outros chamam de puro génio -, e que em muitas outras ficava em silêncio durante largas temporadas, divagando entre a presunção e a insegurança, olhando com desdém para a fama mas sentindo uma voraz necessidade de reconhecimento e elogios – como aqueles que recebeu de Paul Verlaine, que se tornou seu amante até se tornar descartável, mas não sem antes com ele ter descoberto a embriaguez. Quanto a Mathilde, a mulher de Verlaine, tinha por Rimbaud um ódio imenso, considerando-o um saloio sem maneiras.
Rimbaud foi alguém que declarou a morte à poesia e à escrita, partindo rumo ao mar e mais tarde ao deserto, sentindo que “tinha dentro de si outra linguagem que não a dos versos”. Ou, de outra forma, um espírito “que continuava a lutar cegamente consigo próprio”. Ana Cristina Silva toca em muitas das características do furacão Rimbaudiano, seja a noção da poesia como anti-burguesa ou da escrita como culpa, a descoberta do haxixe como potenciador das cores e aromas ou o absinto como um reflexo do mal, o tremendo egoísmo que, entre outros atributos menos nobres, fez dele uma criatura maldita, lutando eternamente contra o tédio e recusando qualquer emoção que não tivesse, em si, o potencial da violência. Ou a infância não vivida ao lado da mãe, “uma mulher amargurada, agarrando-se ao dever para sobreviver no dia-a-dia”, e que o lançou nessa vertigem do excesso como parte do processo de extrair ao mundo as palavras para um verso arrancado às profundezas. Cinco estrelas.
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