Sempre que se aproxima a comemoração da Revolução dos Cravos, encontramos nos escaparates das livrarias diversas publicações dedicadas às muitas mudanças que ela operou em Portugal. Originalmente, o jornalista João Pedro Henriques escolheu abordar a efeméride sob outro prisma, analisando características da nossa sociedade que têm persistido ao longo de décadas de democracia, em “Revolução Inacabada: o que não mudou com o 25 de Abril” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2024).
Não há aqui a menor nostalgia de tempos idos, nem uma desvalorização das “conquistas de Abril”, mas sim o reconhecimento da existência de várias “linhas de continuidade da ditadura para a democracia”, servindo duas delas como eixos de pesquisa e reflexão: o elitismo na política e o machismo na justiça.
Apesar de contar menos de cem páginas, o livro é bastante profundo, apoiando-se o autor em declarações de especialistas e leituras de estudos diversos – desde relatórios estatísticos a teses académicas –, cujos resultados são transmitidos e articulados com grande clareza. É assim que demonstra, por exemplo, que Portugal sempre se caracterizou por um contraste abismal entre os níveis médios de formação dos cidadãos e os dos governantes, possuindo uma percentagem de ministros com licenciatura ou equivalente nunca inferior a 93% (ultrapassando a média nas democracias mais antigas da Europa Ocidental). Seja qual for a tendência ideológica do regime, a qualificação académica constitui-se como um “mecanismo social de restrição do campo de recrutamento da elite”.
À exposição desta desigualdade, sucede-se a descrição de como a cunha e o compadrio se mostram imunes a rupturas políticas e sociais. Tais práticas são enquadradas num problema mais vasto de “acentuado desprezo individual pelo bem comum”, cuja resolução não é facilitada pelo facto de a Justiça ser “um dos domínios do Estado que menos impacto sofreu com a transição democrática […] mantendo muitas das características que possuía durante o Estado Novo: opacidade, distanciamento e conservadorismo”.
Poucas coisas denunciam melhor o conservadorismo da Justiça do que a mentalidade sexista, revelada por certas sentenças judiciais referentes a crimes sexuais e de violência doméstica. Nem o acesso das mulheres às magistraturas – considerado uma das grandes transformações estruturais que marcaram a diferença entre o antes e o depois do 25 de Abril –, nem o progresso histórico das leis evitaram a escrita de acórdãos de arrepiar, dos quais encontramos aqui alguns excertos. Também a aplicação excessiva (tendo em conta comparações estatísticas internacionais) de mecanismos como a pena suspensa e a suspensão provisória do processo deixam, na prática, demasiados criminosos sem castigo, livres para executarem ameaças e vinganças.
O autor assume que os constrangimentos de tempo e espaço impediram a inclusão neste livro de um terceiro tema: o peso esmagador dos debates sobre futebol no espaço público português e as consequências desse fenómeno em múltiplas esferas da nossa vida. A apreciação desta obra leva-nos a desejar que consiga reunir brevemente condições para essa análise, e que ela seja pelo menos tão incisiva quanto a que acabámos de ler.
Sem Comentários