Quando lemos ou ouvimos referências a uma história sobre a revolta dos animais de uma quinta contra os opressores humanos, é inevitável pensarmos num dos títulos mais famosos de George Orwell: “O Triunfo dos Porcos” (ou “A Quinta dos Animais”, numa tradução mais recente), publicado pela primeira vez em 1945, no Reino Unido. Porém, em 1922, foi impresso um enredo semelhante da autoria de Władisław Reymont (1867-1925), um autor polaco que chegou a atingir a popularidade, antes de ser votado à obscuridade. É impossível sabermos ao certo se este inspirou Orwell, mas a suposição é plausível, sobretudo porque o britânico viveu em Paris no final da década de 1920, tendo convivido com intelectuais polacos exilados nessa cidade.
O texto de Reymont, que agora podemos ler numa tradução directa do original polaco, intitula-se “Revolta” (E-Primatur, 2024) e principia com o cão Rex a ser espancado pela governanta da quinta. O enorme e possante canídeo, outrora acarinhado, vê-se forçado a roubar comida para sobreviver desde que o dono – deduzimos nós – faleceu. Ele, que se considerava diferente dos restantes animais, ao ponto de se prontificar a atacá-los conforme aprouvesse ao seu senhor, é obrigado a fugir e a esconder-se para não ser abatido, beneficiando da protecção solidária das criaturas da quinta e do rapaz Mudo, que com elas comunica. Rex começa então a ver o mundo com outros olhos, atentando nas injustiças e indignando-se com o poder dos humanos sobre as demais espécies e os seus habitats. Embora permaneça bastante tempo dividido entre o rancor e o apego às pessoas, torna-se o líder de um movimento que visa libertar os animais do jugo humano.
Apesar do êxito sangrento da revolta, esta quinta, ao contrário da orwelliana, não é ocupada pelos animais, nem submetida a uma nova ditadura. Na visão ainda mais sombria de Reymont, ela é arrasada e abandonada, com Rex a conduzir os seus seguidores em direcção à “terra de sonho e felicidade” de que os grous falam, num caminho penoso que vai ficando pavimentado com cadáveres. O cão revela-se uma personagem mais complexa do que muitas figuras humanas da literatura universal: um herói falível, capaz de grande crueldade, cuja demanda contrasta com o cinismo dos lobos, e que sofrerá as consequências de nem todas as criaturas estarem dispostas a pagar o mesmo preço pela liberdade. Parafraseando o Mudo, todas sabem comer, mas nem todas são capazes de semear – e conjugando-se as dificuldades do presente com a descrença no radioso futuro prometido, intensifica-se a saudade de um passado de submissão a donos que asseguravam um tecto, alimento e calor.
Reymont, nascido numa família nobre empobrecida, celebrizou-se graças a narrativas com preocupações sociais e críticas ao capitalismo, mas este seu último romance fê-lo cair em desgraça entre aqueles que o interpretaram como uma alegoria contra a revolução bolchevique. Apesar de ter recebido o Prémio Nobel da Literatura em 1924, o seu país natal baniu-lhe os livros durante décadas, além de bloquear a venda dos direitos de autor para o estrangeiro. Vale a pena aproveitar a oportunidade de descobri-lo entre as preciosidades da Colecção Livro B.
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