O escritor Milton Hatoum nasceu em Manaus, em 1952, no seio de uma família de imigrantes libaneses. Editado em 1989, “Relato de Um Certo Oriente” (Companhia das Letras, 2018) – o seu primeiro livro – conta a saga de uma família burguesa de imigrantes libaneses, que deixam as areias do deserto para se instalarem em Manaus nos anos 50, com a Amazónia ali ao lado.
Uma mulher está de regresso ao seu local de infância, onde espera reencontrar a mãe adoptiva, Emilie. Essa mulher, nunca nomeada, embarca numa viagem pela memória, desenhando um retrato dos acontecimentos que moldaram a sua vida e a da sua família, passando por figuras e episódios coloridos que ganham vida nas páginas do livro.
A matriarca Emilie é a espinha dorsal, que serve de estrutura a toda a família. Católica devota, casou-se com um ensimesmado muçulmano – referido no livro apenas como o Pai. O casal teve quatro filhos: Samara Délia, Hakim, e mais dois rapazes, que não merecem nome no livro – são chamados de inomináveis, porque “tinham o demônio tatuado no corpo e uma língua de fogo”. Há ainda dois filhos adoptados: um deles a narradora inicial, o outro um rapaz que virá a mudar-se para o outro lado do oceano, com destino a Barcelona. É ele o destinatário da carta que relata toda esta história.
O livro é rico em personagens curiosas: temos Soraya Ângela, filha de Samara Délia, maltratada pelos inomináveis tios por ser surda-muda e sem pai conhecido; há o fotógrafo alemão Dorner, que passa os dias com uma Hasselblad, fotografando “Deus e o mundo nesta cidade corroída pela solidão e decadência”; há também Hindié Conceição, a grande amiga de Emilie, que a acompanha até ao fim e que desprendia “um cheiro, uma aura de fétidos perfumes que flutuava ao seu redor”.
Hatoum faz uso de uma técnica narrativa peculiar: à maneira das Mil e Uma Noites, é a partir dos relatos da sua galeria de personagens que a história nos é contada, como se de uma manta de retalhos se tratasse: um coro de vozes, do qual a narradora é uma espécie de maestro, dando sentido à história.
Ao contrário de um fio narrativo linear, “Relato de Um Certo Oriente” pinta laboriosamente um quadro das relações e atritos entre os membros da família. E, se por vezes se torna complicado acompanhar as mudanças de perspectiva a cada capítulo, a escrita ornada e muito visual de Milton Hatoum mantém o leitor preso, fazendo-o viajar pelas suas frases como quem viaja por paisagens verdejantes: sem destino certo, apenas tratando de apreciar o panorama.
4 Commentários
Excelente. Precisava desta resenha para complementar minha leitura. Deus o abençoe
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É uma família de imigrantes, não?
Certíssmo, obrigado!