A melhor descrição de Mário Conde, tenente da polícia cubana, nascido e criado em Havana e protagonista não herói desta obra, é feita pelo seu grande amigo Carlos Magricela, no terceiro livro do Quarteto de Havana – no original designado por “Máscaras” e, na edição portuguesa, traduzido como “Morte em Havana”: ”dizia sempre que Conde era um cabrão sofredor, um nostálgico incorrigível, um masoquista por conta própria, um hipocondríaco à prova de choque e o tipo mais difícil de consolar deste mundo”.
Nas palavras do próprio Mário Conde, desta vez em “Vento de Quaresma” – o segundo livro do quarteto -, descobrimos o melhor auto-retrato de um polícia consciente: “Ninguém imagina como são as noites de um polícia. Ninguém sabe que fantasmas o visitam, que ardores o agridem, em que inferno cozinha em lume brando – ou envolto em chamas agressivas. Fechar os olhos pode ser um desafio cruel, capaz de despertar aquelas penosas figuras do passado que nunca abandonam a memória e voltam, noite após noite, com a persistência incansável do pêndulo. As decisões, os erros, os actos de prepotência e até as fraquezas da bondade regressam como culpas impagáveis a uma consciência marcada por cada pequena infâmia cometida no mundo dos infames”.
Mário Conde é o porta voz de Leonardo Padura para nos mostrar a sua amada Cuba, a vida e a sociedade cubanas, fora do discurso oficial e da propaganda do regime político. Aliás, Padura, escritor premiado e distinguido em vários géneros e formatos literários, fala claramente das vantagens do género policial, que declara nada ter de menor e ser detentor da grande virtude de nos colocar do lado mais obscuro da sociedade. É esta realidade bem sua conhecida que Padura apresenta num quadro repleto das frustrações, esperanças e dos desencantos da sua geração.
Se o Quarteto de Havana fosse uma peça de musica clássica, diríamos que a abertura em “O Passado Perfeito” foi feita com a melhor descrição de uma ressaca, resultante de uma noite que não seguiu a máxima preventiva do risco letal da ingestão de uma misturada etílica – cerveja, vinho tinto (“um vinho romeno meio fatela mas sofrível”… e um litro de rum): “Não precisou de pensar para compreender que o mais difícil seria abrir os olhos. Aceitar nas pupilas a claridade da manhã que resplandecia nos vidros das janelas e pintava com a sua luminosidade gloriosa todo o quarto, e saber então que o ato essencial de abrir as pálpebras é admitir que dentro do crânio assenta uma massa escorregadia, disposta a empreender uma dança dolorosa ao mais pequeno movimento do seu corpo”.
Há, também, o humor perspicaz e arrasador sobre a condição humana: “O Coelho não consegue evitar que os dentes lhe fiquem de fora, sabe Deus se estaria a rir, com aqueles dentões nunca se sabia, também era magérrimo e tinha escolhido a licenciatura em História como primeira opção e Ensino de História como segunda, e andava por esses dias convencido de que se os ingleses não tivessem saído de Havana em 1863, Elvis Presley se calhar teria nascido em Pinar del Río ou em River Pine City” (em “Passado Perfeito”).
Abunda a crítica social e política, onde não faltam as alusões ao modo e às condições de vida do povo cubano: “o cortiço em que cada aposento é transformado em casa independente”, a caderneta de abastecimento que faz de Josefina (mãe de Magricela) uma verdadeira heroína na cozinha e na mesa; ou os bairros dos ricos, “o êxito daqueles homens muito ricos – que não paravam de se surpreender por o serem, e tanto, com apenas três golpes de audácia política, financeira ou mesmo contrabandista, necessitava de tal forma da evidência que todos se empenharam em dar uma forma eterna à sua fortuna, e compraram todos os talentos necessários para perpetuar a sua vitória e magnificaram-na em pedras, ferros e vidros capazes de criar as mansões mais deslumbrantes da cidade” ( em “Morte em Havana”).
Encontramos ainda a censura, sentida logo desde a escola, em que o atrevimento de uma revistinha de dez folhas, que tinha com o lema “0 Comunismo será uma aspirina do tamanho do Sol?”, fez com que não visse a luz da tinta e do sol. (em “Um Passado Perfeito”). Censura e opressão vão figurando ao longo deste Quarteto, como em “A Morte em Havana”: “A revista e o atelier foram encerrados, acusando-os de escrever relatos idealistas, poemas evasivos, críticas inadmissíveis, histórias alheias às necessidades actuais dos país, embrenhado na construção de um homem novo e de uma sociedade nova”.
Não falta uma abordagem ao preconceito, às questões de género que, à primeira vista, parecem não passar de um machismo vulgar e visceral, mas que depois convivem com explicações para o travestismo: “por isso lhe pareceu lógica a identificação do travestismo humano e da camuflagem animal, já não para caçar ou defender-se, mas para executar um dos sonhos eternamente perseguidos pelo homem: o desaparecimento” (em “Morte em Havana”).
O Quarteto de Havana é tudo isto e muito mais, servido com o acompanhamento de uns crimes. Um grande banquete literário cubano, para degustar, sentir e atacar. Para os que ficam ou que querem mesmo tudo o que há para ler com o Tenente Mário Conde, foram acrescentadas à tetralogia outras duas obras: “Adios, Hemingway” e “La neblina del ayer”.
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Quarteto de Havana (Porto Editora)
Volume I : Um Passado Perfeito (1991) e Ventos de Quaresma (1994)
Volume II – Morte em Havana (1997) e Paisagem de Outono (1998)
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