Em 1926, uma jovem de dezassete anos suicida-se em Calcutá, no apartamento da sua família de classe média. Décadas mais tarde, a sua tragédia desencadeará uma reflexão por parte de Gayatri Chakravorty Spivak, a qual se materializará no ensaio “Pode a Subalterna Tomar a Palavra?” (Orfeu Negro, 2021).
Spivak é hoje uma das pensadoras mais influentes na área dos estudos pós-coloniais e esta obra, pioneira na aplicação de uma análise desconstrutivista a questões de representação, discurso e poder, contribuiu muito para isso. Desde a publicação da versão original, em 1983, foi alvo de revisões, tendo esta primeira edição em língua portuguesa sido preparada em estreita articulação com a autora, conforme explica o tradutor, António Sousa Ribeiro, que também assina um excelente prefácio.
Nascida na Índia, a autora declara estar “longe de ser avessa a aprender com a obra de teóricos ocidentais”, mas critica pensadores como Deleuze, Foucault, Hegel, Marx e Freud, entre outros, denunciando o etnocentrismo na produção do conhecimento, mais concretamente na representação de grupos subalternos, e pondo em causa as narrativas da realidade que se estabeleceram como normativas na historiografia colonial. Salienta-se que, nesta análise, a subalternidade não resulta da pertença a uma classe social, mas sim da posição ocupada nas relações de poder. É assim que a jovem suicida indiana de classe média, enquanto sujeito colonizado e de sexo feminino, pode ser classificada como subalterna.
Um exemplo que a autora utiliza para dissecar a justificação do imperialismo como missão civilizadora é a abolição da prática indiana do sacrifício das viúvas, conhecida como sati, no século XIX. Reiterando que não advoga esta prática, a autora rejeita tanto a romantização destes sacrifícios, por parte dos movimentos nacionalistas indianos, como a sua recodificação como crimes, por parte da administração britânica. Segundo ela, cada uma destas prescrições para o comportamento feminino possui a sua própria carga ideológica, à qual corresponde um diagnóstico da vontade feminina. Num contexto mais alargado, são também rejeitadas as análises nas quais a acção é sempre masculina e a mulher é relegada para o papel de vítima, sendo apagado “o lugar dúbio da livre vontade do sujeito sexuado constituído como mulher”.
Infelizmente, segundo Spivak, “entre o patriarcado e o imperialismo, constituição do sujeito e formação do objecto, a figura da mulher desaparece, não apenas num puro nada, mas num violento vaivém que é a figuração deslocada da «mulher do Terceiro Mundo» apanhada entre a tradição e a modernização, o culturalismo e o desenvolvimento”. Daí surge a interrogação acerca da possibilidade de uma subalterna se fazer ouvir.
O texto não é de leitura fácil, graças à complexidade da argumentação e aos conhecimentos teóricos que a autora invoca, mas é inegável que se trata de uma obra marcante na sua área, que denuncia os mecanismos de exploração e dominação que silenciam grande parte da população mundial.
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