“Pão Seco” (Antígona, 2021), de Muhammad Chukri, conquista desde logo a atenção dos leitores com a breve nota biográfica, que refere que Chukri apenas aprendeu a ler aos 21 anos, encontrando na leitura o refúgio – e provavelmente salvação – da pobreza e da violência que marcaram todo o seu crescimento.
“O meu irmão chora, contorce-se com dores, chora por pão. É mais novo do que eu. Choro com ele. Vejo-o acercar-se dele. O monstro acerca-se dele. A demência nos olhos. As mãos quais tentáculos dum polvo. Ninguém o consegue deter. Sonho que peço ajuda. Monstro! Demente! Alguém o detenha! Num ataque de fúria, o maldito torce-lhe o pescoço. (…) Colocam-no numa cova húmida. Estremeço e choro. Tem uma mancha de sangue coagulado á volta da boca. Desaparece coberto pela terra. Tornou-se um montículo.”
Uma violência comprovada pela narrativa áspera, árida e bruta com que, desde cedo, a cronologia de Chukri se vai estendendo aos olhos do leitor. A seca, a fome e o regime não têm, por vezes, nem pão seco para alimentar estas bocas ferozes, insaciáveis e inevitavelmente pedintes, ladras e amorais que deambulam de terra em terra, descobrindo nada mais que outros abandonos, abusos e mais fome.
“De vez em quando o meu pai ausenta-se por um dia ou dois. Quando regressa, brigam. Muitas vezes ao ponto de a fazer sangrar. Mas, à noite, ouço-os na cama a rir e a arfar de prazer. Comecei a perceber o que faziam: dormiam nus e abraçavam-se. Com que então é assim que se reconciliavam. Quando for grande também vou ter uma mulher. De dia brigarei com ela, arriando-lhe pancada e insultando-a, e à noite reconcilio-me com ela pela nudez…”
“Pão Seco” é um relato sem conduta, fragmentado entre o orgulho besta de quem cresce desenraizado e desumanizado e alguma compaixão com areia nas engrenagens – que pode vir sob a forma de um cigarro, uma tarimba velha onde encostar os ossos ou um bocado de pão doce e álcool. Sempre muito álcool. E sempre a fome.
“Só uma peseta bastaria (…) Senti uma dor tremenda no estômago enquanto caminhava sob um sol tórrido. A loucura da fome e da canícula impediam-me de pensar com clareza. Apanhei do chão um peixito seco. Cheirei-o (…) Mastiguei-o com asco (…) O fedor fica-me na boca. (…) Vertigens. Um líquido amarelo derramou-se-me pela boca e pelo nariz. Respirei fundo. O meu coração palpitava violentamente. Uma cebola bastaria para evitar as tonturas.”
O delírio da fome, substituído pelo delírio do álcool, é muitas vezes a compaixão encontrada. O álcool como uma novena, que apazigua e adormece o desespero, de só se ver rodeado de violência, desamparo e injustiça – embora o delírio assuma, por vezes, uma clareza profética, a única que parece fazer justiça à vida que lhe está reservada.
“Se há alguém que eu deseje que morra antes de chegar a devida hora é o meu pai. Odeio-o a ele a todo os que se lhe assemelham. Perdi a conta às vezes que imaginei que o matava. (…) O ego do meu pai está presente até mesmo durante a sua ausência. (…) Ele conseguiu que eu desconfiasse de toda a comida e de tudo o que me davam.”
É precisamente essa violência omnipresente, inclemente, insolente e indecente, que o transforma. Desesperado por consolo, um menino torna-se homem pela lei da pedrada. Um ser deixado ao relento, sempre pecador, mas sem saber quais são os seus pecados.
“A Khadija virou-se de barriga para baixo a dormir. Estendi a mão e passeei-a pelas suas costas. Continuava a esfregar-se na cama. Montei-a pelas costas para viajar. Ela tentou derrubar-me de cima da sua bossa. Agarrei-a bem, pelo cabelo, para não cair no vazio. Ela era uma camela voando por cima do deserto. Cair de cima dela seria a minha perdição no deserto desconhecido.”
O deserto desconhecido é o dos afectos sinceros e o da esperança. Da redenção. Até o leitor sente essa necessidade perante o caos narrativo, que consagra o desespero intrínseco e avassalador que se torna no maior currículo deste renegado. Caos esse que tanto sensibiliza como repele o leitor, que não consegue ficar indiferente à miséria tentacular que “abraça” este autor proscrito: um homem seco e amassado, que acaba a conhecer a redenção entre as estrofes melodiosas de quem apenas aprendeu a ler e a escrever em adulto – e depois de aprisionado. A única redenção que, talvez, lhe tenha mostrado a liberdade.
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