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Pão Seco, Muhammad Chukri, Antígona, Deus Me Livro, Crítica
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“Pão Seco” | Muhammad Chukri

Por Cris Rodrigues · Em 24/06/2022

“Pão Seco” (Antígona, 2021), de Muhammad Chukri, conquista desde logo a atenção dos leitores com a breve nota biográfica, que refere que Chukri apenas aprendeu a ler aos 21 anos, encontrando na leitura o refúgio – e provavelmente salvação – da pobreza e da violência que marcaram todo o seu crescimento.

“O meu irmão chora, contorce-se com dores, chora por pão. É mais novo do que eu. Choro com ele. Vejo-o acercar-se dele. O monstro acerca-se dele. A demência nos olhos. As mãos quais tentáculos dum polvo. Ninguém o consegue deter. Sonho que peço ajuda. Monstro! Demente! Alguém o detenha! Num ataque de fúria, o maldito torce-lhe o pescoço. (…) Colocam-no numa cova húmida. Estremeço e choro. Tem uma mancha de sangue coagulado á volta da boca. Desaparece coberto pela terra. Tornou-se um montículo.”

Uma violência comprovada pela narrativa áspera, árida e bruta com que, desde cedo, a cronologia de Chukri se vai estendendo aos olhos do leitor. A seca, a fome e o regime não têm, por vezes, nem pão seco para alimentar estas bocas ferozes, insaciáveis e inevitavelmente pedintes, ladras e amorais que deambulam de terra em terra, descobrindo nada mais que outros abandonos, abusos e mais fome.

“De vez em quando o meu pai ausenta-se por um dia ou dois. Quando regressa, brigam. Muitas vezes ao ponto de a fazer sangrar. Mas, à noite, ouço-os na cama a rir e a arfar de prazer. Comecei a perceber o que faziam: dormiam nus e abraçavam-se. Com que então é assim que se reconciliavam. Quando for grande também vou ter uma mulher. De dia brigarei com ela, arriando-lhe pancada e insultando-a, e à noite reconcilio-me com ela pela nudez…”

“Pão Seco” é um relato sem conduta, fragmentado entre o orgulho besta de quem cresce desenraizado e desumanizado e alguma compaixão com areia nas engrenagens – que pode vir sob a forma de um cigarro, uma tarimba velha onde encostar os ossos ou um bocado de pão doce e álcool. Sempre muito álcool. E sempre a fome.

“Só uma peseta bastaria (…) Senti uma dor tremenda no estômago enquanto caminhava sob um sol tórrido. A loucura da fome e da canícula impediam-me de pensar com clareza. Apanhei do chão um peixito seco. Cheirei-o (…) Mastiguei-o com asco (…) O fedor fica-me na boca. (…) Vertigens. Um líquido amarelo derramou-se-me pela boca e pelo nariz. Respirei fundo. O meu coração palpitava violentamente. Uma cebola bastaria para evitar as tonturas.”

O delírio da fome, substituído pelo delírio do álcool, é muitas vezes a compaixão encontrada. O álcool como uma novena, que apazigua e adormece o desespero, de só se ver rodeado de violência, desamparo e injustiça – embora o delírio assuma, por vezes, uma clareza profética, a única que parece fazer justiça à vida que lhe está reservada.

“Se há alguém que eu deseje que morra antes de chegar a devida hora é o meu pai. Odeio-o a ele a todo os que se lhe assemelham. Perdi a conta às vezes que imaginei que o matava. (…) O ego do meu pai está presente até mesmo durante a sua ausência. (…) Ele conseguiu que eu desconfiasse de toda a comida e de tudo o que me davam.”

É precisamente essa violência omnipresente, inclemente, insolente e indecente, que o transforma. Desesperado por consolo, um menino torna-se homem pela lei da pedrada. Um ser deixado ao relento, sempre pecador, mas sem saber quais são os seus pecados.

Pão Seco, Muhammad Chukri, Antígona, Deus Me Livro, Crítica“A Khadija virou-se de barriga para baixo a dormir. Estendi a mão e passeei-a pelas suas costas. Continuava a esfregar-se na cama. Montei-a pelas costas para viajar. Ela tentou derrubar-me de cima da sua bossa. Agarrei-a bem, pelo cabelo, para não cair no vazio. Ela era uma camela voando por cima do deserto. Cair de cima dela seria a minha perdição no deserto desconhecido.”

O deserto desconhecido é o dos afectos sinceros e o da esperança. Da redenção. Até o leitor sente essa necessidade perante o caos narrativo, que consagra o desespero intrínseco e avassalador que se torna no maior currículo deste renegado. Caos esse que tanto sensibiliza como repele o leitor, que não consegue ficar indiferente à miséria tentacular que “abraça” este autor proscrito: um homem seco e amassado, que acaba a conhecer a redenção entre as estrofes melodiosas de quem apenas aprendeu a ler e a escrever em adulto – e depois de aprisionado. A única redenção que, talvez, lhe tenha mostrado a liberdade.

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Cris Rodrigues

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