De acordo com o seu cartão-de-visita, Afonso Reis Cabral foi por duas vezes à Alemanha num camião TIR, em busca de uma história. Trabalhou numa vacaria, num escritório de turismo, num alfarrabista e em editoras e, para se divertir, vai-se dedicando à ornitologia, a fazer Scuba Diving e a praticar boxe. À boleia do romance de estreia, “O Meu Irmão”, levou para casa o Prémio Leya em 2014, isto quando ainda não tinha completado 25 primaveras. Seguiu-se, em 2018, este “Pão de Açúcar” (D. Quixote, 2018), um relato ficcional de um caso verídico que ocorreu no início de 2016.
“Baralhei ficção, que é como se faz um romance”, avança Afonso Reis Cabral no prefácio – que designa por Nota antes -, não se coibindo, porém, de avançar desde logo com uma opinião pessoal relativamente a Rafael Tiago, um tipo que “muda pneus, arranja motores e malha chassis”, e que é aqui o elo principal da história: “Nas despedidas insistiu em que se queria livrar da oficina, e coçava-se mais e com mais força. Assegurei-lhe que um dia subiria a marceneiro, sem dúvida, mas claro que nunca vai sair daquilo e só a morte lhe apagará as tatuagens do óleo. E é mais do que merece”.
A história gira à volta de um trio de rapazes, todos eles hóspedes de um lar-internato que desempenha o papel de Escola de Tipografia e Encadernação, um lugar onde não se falava do passado e muito menos se discutia o futuro: o já apresentado Rafa; Nélson, um brutamontes com espírito bully; e Samuel, um tipo com sensibilidade que preferia antes ter um mundo sem pessoas.
Numa das suas prospecções pelo Pão de Açúcar, um projecto falhado para um hipermercado que resultou num esqueleto abandonado de cinco andares – e que se veio a tornar centro de passagem e de dormida -, Rafa acaba por conhecer Gi – antes Gisberto -, que vive em condições miseráveis à espera que a doença a consuma, e que segundo ele “escondia um certo perigo, como a beleza da planta carnívora que seduz para comer”.
A partir do momento em que o segredo é desvendado, Gi passa a ser alvo de múltiplas agressões, sendo tratada por “traveca” ou “paneleiro com mamas”, numa situação-limite que tanto servirá aos não-agressores que presenciaram o acto como, também, ao próprio leitor, num sentido mais amplo da vida em sociedade e da aceitação da diferença: “E nós quietos a ver”.
Numa história de amizade e desilusão, de egoísmo e inveja, de surpresa, decepção e atravessada por um ténue arrependimento e extrema crueldade, Afonso Reis Cabral traça uma hierarquia da adolescência, criando qualquer coisa como um deus das moscas urbano, fazendo um manguito Jean-Jacques Rousseau e à sua ideia de que o homem é bom por natureza.
Um mergulho num mundo que está a dois passos de todos, escondido sob o manto da invisibilidade e do alheamento, e que ilustra bem estes tempos modernos onde, como se lê no romance gráfico “Sabrina”, os factos são bem claros: “A sociedade encontra-se num estado de anomia sem saída”, onde a empatia é cada vez mais um sentimento raro. Um documento histórico e social que nos chega sob a forma de um bem construído romance.
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