No que toca a alter egos literários, poucos terão a densidade, a embriaguez, a melancolia, a comicidade e a violência – sobretudo verbal – de Henry Chinaski, trazido à literatura por Charles Bukowski.
“Pão com Fiambre” (Alfaguara, 2017), publicado pela primeira vez em 1982, vem juntar-se a outros títulos essenciais do autor, que estão a ser publicados ou republicados pela portuguesa Alfaguara, numa missão que deve ser considerada como serviço público.
Com uma boa dose de auto-biografia, o romance recua aos tempos de infância de Chinaski, desde logo vividos à margem, passados com uma família desarranjada imersa em alcoolismo, tuberculose, doenças sexuais e outras maleitas que só poderiam avariar a cabeça a alguém em tão tenra idade. E, se uma das frases preferidas da avó Emily era “Vou enterrar-vos a todos!“, o pai era já menos complacente: “As crianças só deviam ver e nunca ouvir“. Uma rectidão moralista que fez com que as tareias com uma correia de cabedal, pendurada à vista de todos, fossem recorrentes e quase sempre sem motivo válido – um hábito Pavloviano desenvolvido por um pai tirano.
A violência foi, desde logo, o ambiente natural de Chinaski, com a porrada a começar na primária em lutas desiguais e a conduzir a um isolamento – “Tinha a sensação de estar rodeado de espaço vazio” -, muito por culpa de uma acne juvenil inexplicável: “Ninguém se aproximava de mim e não me importava. Estava a ganhar terreno“.
O episódio em que Chinaski descobre a escrita é todo ele Bukowskiano, um falso trabalho escolar escrito sobre a visita do Presidente Hoover, que faz com que surja, depois dos elogios da professora, uma visão mordaz sobre o espírito que alimenta a Literatura: “Então é isso que eles querem: mentiras. Mentiras bonitas. É disso que precisam. As pessoas eram ridículas. Ia ser fácil para mim“.
A descoberta do álcool, na adega bem composta de um colega de escola, foi também ela visionária, o encontro com um veneno que lhe iria garantir a sobrevivência e a sanidade num mundo desconexo: “Bem, encontrei algo que me vai ajudar durante muito tempo. A relva do parque parecia mais verde, os bancos pareciam melhores e as flores mais bonitas. Talvez aquela merda não fosse boa para cirurgiões, mas alguém que queria ser cirurgião não devia estar bom da cabeça“.
Na literatura encontramos uma paixão juvenil por D. H. Lawrence e, depois de vários comentários mordazes, chegamos a Hemingway: “Esse sim, sabia escrever uma frase“. A auto-crítica literária também está lá, sempre num tom crítico, implacável e pouco encorajador: “Os meus pais tinham-me comprado uma máquina de escrever e tinha escrito alguns contos, mas tinham saído muito amargos e imperfeitos. Não que isso fosse mau, mas as histórias pareciam que andavam a pedinchar, que não tinham a sua própria vitalidade. Os meus contos eram mais negros do que os do Becker, mais estranhos, mas não funcionavam. Bem, um ou dois funcionavam – para mim -, mas parecia que eram guiados em vez de fazerem o caminho sozinhos. O Becker era melhor. Talvez me dedicasse à pintura“.
Para Chinaski, a vida acabava para quase toda a gente aos 25 anos: “Toda uma nação de parvalhões a conduzir carros, comer, procriar, a fazer tudo da pior maneira possível, como votar num candidato presidencial que mais se parecesse com eles“. A solução e o mantra de vida trarão, portanto, o isolamento e o álcool, aqui num parágrafo onde, em poucas linhas, abate a religião, desencoraja o militarismo e incita ao inconformismo.
“Nunca encontraria uma maneira de viver confortavelmente com as pessoas. Talvez fosse para monge. Iria fingir que vivia para Deus e viveria num cubículo, tocaria orgão e passaria o tempo a beber vinho. Ninguém me iria aborrecer. Poderia ir para uma cela durante meses, onde não teria de olhar para a cara de ninguém e bastaria que me mandassem vinho. O problema é que as vestes são de pura lã. Seriam piores do que os uniformes do ROTC. Não os poderia usar. Tinha de pensar noutra coisa.”
Para Chinaski, a felicidade nunca poderia ser encontrada como advogado, deputado ou engenheiro, trabalhando o dia inteiro para regressar esmifrado de energia e talento ao lar, nem em piqueniques de família ou celebrações de feriados nacionais. Para isso seria sempre preferível “ser lava-pratos, voltar sozinho para um quarto pequeno e beber até adormecer“.
“Pão com Fiambre” é um dos maiores e mais expostos romances de Bukowski, carregado de raiva e tristeza, marcado pela rebelião, fazendo um valente manguito à curta e sádica existência humana. “Qualquer coisa, qualquer coisa menos isto, este tédio, esta trivial e cobarde existência“. Nada mal para epitáfio.
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