Em tempos de quarentena, ler Italo Calvino (1923-1985) é galvanizar a vida e o mundo, aquela natureza que hoje não podemos pisar, cheirar e captar em pleno, obrigando-nos a apelar ao reservatório de memória que os sentidos nos permitem.
Para muitos um neorrealista e, para outros, fonte de um realismo fantástico, Italo Calvino revelou-se desde sempre um exímio retratista da realidade, atribuindo destaque ao detalhe de cada observação, combinando-a com experiência e reflexão. Para além de romancista sobejamente reconhecido, a sua sensibilidade como jornalista e contista permitiu-lhe usar a escrita como se manuseasse uma ferramenta de preparação e de captação da realidade, como se antes de a retratar (ou para além disso) se preocupasse em prepará-la, segmentando-a no detalhe e, só mais tarde, a semeasse e adubasse com memórias, emoções e reflexões. O resultado é uma colheita extraordinária de intensos estímulos sensoriais e de conhecimento.
Em “Palomar” (D. Quixote, 2020 – reedição), escrito em 1983, Calvino explora a relação com o mundo da personagem, senhor Palomar, enigmática figura míope, distraída e introvertida, tendo por base a observação das formas visíveis, da qual extrai reflexões para a sua própria presença no mundo, a volatilidade do que é captado e a necessária humildade para alcançar o que está oculto, a essência das formas e dos movimentos observáveis.
O senhor Palomar observa o que o rodeia: na praia, detém-se numa onda, num seio nu, no sol; no jardim, observa os amores das tartarugas, o assobio do melro e o prado infinito; no céu, a atenção é captada pela lua, os planetas e as estrelas; na cidade, a reflexão é desencadeada pelos animais que cirandam na casa, pela ida às compras e por uma visita ao jardim zoológico.
Quando medita, o senhor Palomar decide que a sua principal actividade passará a ser observar as coisas, dando a atenção que as mesmas merecem (uma pedra, uma concha vazia, uma folha, um bule…). Todavia, uma evidência: para se retirar verdadeiro conhecimento duma qualquer observação do que nos rodeia e do mundo, é preciso conhecermo-nos a nós próprios, estarmos em paz connosco para depois estarmos em paz com o que nos rodeia.
Numa fase de profundos desafios ao homem e à sua relação com o mundo, Italo Calvino relembra o poder e a maravilha que encerra a capacidade de cada leitor, através das suas descrições e reflexões, alcançar representações da realidade, da saudosa experiência de, em liberdade e segurança, observar, tocar, cheirar e saborear. “Palomar” é um daqueles livros que apetece reter, reler, renovar no diálogo com outrem – quiçá numa leitura partilhada, seguida de um momento de olhos fechados e mente refulgente.
“O que pode existir de mais estável do que o nada? E, no entanto, também acerca do nada não se pode estar certo a cem por cento.”
1 Commentário
Gosto muito muito de Italo Calvino. Gostei muito de voltar aos seus livros depois de ler este texto. A capa da nova edição de “Palomar” é belíssima.