Questionada sobre o que a levou a ter escrito, trinta e quatro anos depois, a continuação do já clássico “A História de uma Serva”, Margaret Atwood respondeu desta forma: “A inspiração para este livro partiu daquilo que os leitores me foram perguntando sobre Gileade e o seu funcionamento interno. Bem, nem toda! A restante inspiração, recolhi-a do mundo em que vivemos“. Pois bem, a verdade é que “Os Testamentos” (Bertrand Editora, 2020), situado década e meia depois dos acontecimentos de “A História de uma Serva”, consegue elevar ainda mais a fasquia do seu precedente, numa história tripartida que, através de três mulheres com percursos e ideais radicalmente diferentes, desmantela e implode o sistema teocrático da República de Gileade, deixando o leitor a sonhar com uma revolução para o tempo presente.
De um lado temos duas mulheres, saídas da primeira geração que cresceu sob a nova ordem, separadas por uma fronteira bem delimitada e vigiada: Agnes, desconhecedora das suas origens, foi adoptada por uma família Gileadiana, preparada para assumir o seu papel como Esposa de um Comandante; Daisy vive em Toronto com os seus pais adoptivos, que possuem uma loja de roupas de segunda mão que vai servindo de fachada a actividades radicais, e que se encontra “naquela idade em que de repente os pais passam de pessoas que sabem tudo a pessoas que não sabem nada”. Do outro está a Tia Lydia, “o papão usado pelas martas para assustar as criancinhas: uma lenda”, que nos conta o seu percurso através de um manuscrito que escreveu e guarda em segredo, e que será publicado como O Hológrafo de Ardua Hall, também conhecido como Os Testamentos, onde medita sobre o funcionamento interno e o sistema de poder de República e toda a hipocrisia, corrupção e injustiça a ele associados. E que, na sombra, vai preparando uma revolução.
Em Gileade, todo o assédio sexual às mulheres é encarado como uma mentira que merece castigo, sendo o desígnio de Deus o mantra e a desculpa para uma sociedade patriarcal, desigual e castradora, onde subsistem os casamentos arranjados, o adultério em formato de violação ou as mortes por apedrejamento no caso da perda antecipada da virgindade. Um lugar construído de forma a evitar a empatia entre mulheres subjugadas, uma vez que “a desgraça de outra rapariga podia pegar-se a nós se nos aproximássemos demasiado”, e que vai tolhendo qualquer ideia de sublevação, levando à resignação em nome da mísera sobrevivência: “De que serve uma pessoa atirar-se para a frente de um rolo compressor por princípios morais e ser esmagada, plana como uma meia de onde saiu o pá? É melhor fundir-se na multidão, essa multidão untosa, que destila ódio, que louva piamente. É melhor atirar pedras do que levar com elas. Ou é melhor para as hipóteses de continuar viva”.
Podendo ser lido de forma independente – apesar de ser aconselhável começar com “A História de uma Serva” -, “Os Testamentos” mostra como, de certa forma, Atwood foi uma escritora visonária por volta de 1985, antevendo um mundo governado por ditadores eleitos, dominado pelas fake news e a tentação de reescrever a História, com as portas a fecharem-se silenciosamente perante as vagas de refugiados. Tudo à boleia de frases curtas, incisivas, e de jogos de palavras engenhosos, que nos deixam a pensar sobre a linguagem e em como esta pode ser usada para criar um sistema de mentiras. Brilhante.
Sem Comentários