“Os Rostos” (Dom Quixote, 2024), de Tove Ditlevsen, é uma obra com uma forte carga psicológica, que explora os temas da loucura, da alienação e a relação entre arte e sofrimento, sempre a partir de uma perspectiva feminina, contrastando potencialidades com limitações impostas às mulheres.
A protagonista é Lise Mundus, uma escritora que se vê confrontada com uma crise mental e uma série de alucinações, reflectindo essa tensão entre o que as mulheres aspiram e o que a sociedade lhes permite. Viajando até meados de 1950, a uma sociedade ainda exímia em segregar mulheres em hospícios, por isso, Ditlevsen constrói um retrato íntimo da fragilidade emocional e da luta interna, mostrando que a loucura de Lise é, em parte, uma resposta à pressão sufocante das expectativas sociais. E vai mais além, avançando que a loucura pode ser uma – a – fuga possível, uma perspectiva controversa e provocatória.
Tove Ditlevsen cria, através de Lise (uma possível meta-ficção), uma metáfora poderosa para o isolamento e a desconexão que muitas mulheres sentem. Os rostos que a protagonista vê simbolizam o peso da culpa e da dor que carregam, são uma representação da opressão feminina que se manifesta sob a forma de alucinações e crises psicológicas. A autora explora igualmente outras metáforas – sobre os homens, a família ou as próprias relações entre as mulheres – escancara perante o leitor uma porta para a profundidade e a riqueza do seu complexo universo narrativo.
Com intensidade e provocação do princípio ao fim, a autora dinamarquesa obriga o leitor a experienciar múltiplas camadas de interpretação e dúvidas. A riqueza de sensações e imagens é de tal forma palpável (pegajosa, até) que ressoa muito depois de terminada a leitura.
Sobressai a critica social e de género, mas a sua maior mestria está na fragmentação e na intensidade do relato, obrigando à reflexão sobre mais uma forma de segregar: a da doença mental. Deixa ainda, pelo caminho, uma interrogação que poderá levar a uma reflexão ainda maior: se o uso de tantas máscaras, bem como a obrigação de silenciar as vozes, não conduzirá a episódios de desassociação e de loucura. A própria vida da autora foi da resistência ao estigma da depressão, envolvendo isolamento, medo e crises matrimoniais, que a levaram à toxicodependência e, por fim, ao suicídio.
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