Já por aqui tínhamos falado de “A Estrada Subterrânea”, livro que valeu a Colson Whitehead o Prémio Pulitzer de Ficção, o National Book Award, o Indies Choice Book Award e a Andrew Carnegie Medal of Excellence. A verdade é que, no que toca ao Pullitzer, o escritor norte-americano repetiu a gracinha com “Os Rapazes de Nickel” (Alfaguara, 2020), um feito raramente alcançado na história da literatura americana. Nascido em 1969 em Nova Iorque, graduado em Harvard e em tempos crítico de discos, filmes e livros, Colson é hoje uma voz fundamental das letras americanas, que parte da violência extrema para resgatar a ética que subsiste na condição humana.
Livro ficcional, “Os Rapazes de Nickel” foi inspirado pela história da Dozier School for Boys, ocorrida em Marianna, na Florida, nos anos 1950/60. A Dozier era um reformatório para onde eram enviados rapazes considerados inaptos para a vida em sociedade, e que nele acabaram por sofrer abusos e agressões extremas, muitos deles acabando por morrer vítimas de uma violência bárbara. No cemitério oficial encontram-se 31 cruzes, mas os estudos forenses que se fizeram nas campas revelaram muitos mais corpos, sem qualquer registo de lá terem sido postos. E há ainda outras localizações não identificadas, numa investigação que continua em aberto procurando encontrar a verdade – e talvez um pedido de desculpa e uma compensação do estado da Florida para as famílias de todos aqueles que foram vítimas de um filme de terror sofrido na pele.
“Mesmo depois de mortos, os rapazes eram um problema”. Começa assim este assombroso romance de Colson Whitehead, um livro que conta a história de Elwood Curtis, um rapaz que, tal como Martin Luther King, sonha com um mundo mais justo. Criado pela avó Harriet, Elwood é um estudante aplicado e que parece ter tudo para sair de uma vida miserável, mas um mal entendido faz com que acabe no reformatório Nickel, que promete fazer dos rapazes que lá entram “homens honrados e honestos”. Um lugar que, em plenos anos 1960, não deixa de fazer uma clara distinção entre brancos e negros – aos negros eram entregues os artigos mais gastos.
O majestoso aspecto do exterior leva Elwood Curtis a crer estar numa universidade alternativa, mas o interior degradado e sujo cedo o leva a perceber que está agora num outro mundo, um lugar mais perverso onde há dois caminhos a seguir, mas que nem sempre levam aos mesmos lugares: fugir ou aceitar um destino aleatório que, quando bate à porta, conduz quem a abre a uma casa de horrores, mostrando que a cor de pele tem um peso independentemente da geografia: “Aqui e lá fora é tudo igual, só que aqui ninguém tem de fugir”.
Elwood terá como companheiro de reformatório e amigo um rapaz chamado Turner, apesar de partilharem visões muito diferentes sobre a vida, a sociedade e o que o futuro reserva a um negro na América. Se Elwood continua a ser um defensor do pacifismo, Turner pretende devolver a crueldade com mais crueldade, convicto de que a justiça apenas existe em teoria.
Colson Whitehead consegue transformar a injustiça e a resistência num monumento literário a um caso real de segregação racial, onde os ecos das leis de Jim Crow, apesar de revogadas, nada significavam a quem orgulhosamente seguia o princípio hipócrita e de exclusão resumido num “separados, mas iguais”. Afinal, “uma coisa era deixar que um negro matasse em nome do Estado, outra era deixá-lo morar ao lado de um branco”.
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