Há livros que, mal fixado neles o primeiro olhar, nos seduzem, originando um clique que faz com que a nossa atenção e vontade seja a de confirmar o deslumbramento inicial. É o caso deste “Os Órfãos de Brooklyn” (Lua de Papel, 2019), de Jonatham Lethem, livro vencedor do National Book Critics Circle e, no ano seguinte, do Gold Dagger – uma importante distinção da literatura policial.
Lionel Essrog, o protagonista, vive num orfanato durante a infância e juventude, até um resgate feito por um gangster de Brooklin, de seu nome Frank Mina, que o contrata, em conjunto com outros rapazes em iguais circunstânciasl para actividades não muito claras – e que lhe dá alguma estrutura à vida. A morte de Frank, porém, devolve o caos à sua existência, mas também um objectivo bem definido: descobrir o motivo e o responsável pelo homicídio.
Lionel sofre, porém, de síndrome de Tourette, uma perturbação que se caracteriza pela apresentação de tiques motores ou vocais crónicos – de acordo com o DSM 5, o sistema classificativo das Perturbações Mentais e do Desenvolvimento. Os tiques motores mais frequentes incluem o piscar dos olhos, os movimentos do pescoço, o encolher dos ombros, o fazer caretas, o saltar, o tocar e o cheirar objectos. Uma variante curiosa corresponde à copropraxia, a produção repetida e irresistível de gestos obscenos. Os tiques vocais mais frequentes correspondem ao aclarar da voz, ao grunhir, ao resfolegar, à coprolalia (dizer obscenidades, plebeísmos ou palavras que ferem as convenções sociais), à ecolalia (repetição da última palavra ou sons do interlocutor) e à palilalia (repetição involuntária dos próprios sons ou palavras).
Jonatham Lethem oferece-nos uma entrada triunfal, com uma das melhores descrições sobre o interior de alguém que padece deste síndrome: “…as palavras saem em catadupa da cornucópia que é o meu cérebro para correrem pela superfície do mundo tocando na realidade como os dedos nas teclas de um piano. Acariciam, acotovelam. São um exército invisível numa missão de paz, uma horda pacífica. Não querem fazer mal. Aplacam, interpretam, massajam. Alisam imperfeições por todo o lado, alisam os cabelos, põem patos em fila, substituem a relva defeituosa de um campo de golfe. Contam e limpam talheres de prata. Dão palmadinhas suaves nos traseiros das velhotas para que elas se riam. Só que – e aqui é que está o busílis – quando a perfeição é excessiva, quando a superfície está lisa demais, os patos todos enfileirados e as velhotas desvanecidas, então o meu pequeno exército revolta-se e entra pelas lojas dentro. A realidade de um ponto aqui e ali, o tapete precisa de um defeito. As minhas palavras começam a puxar aqui e ali, nervosas, procurando apoio, um ponto fraco, um ouvido vulnerável. É então que acontece – o desejo de gritar na igreja, no quarto do bebé, num cinema cheio de gente”.
O ambiente de Brooklyn, bem como os vários submundos inimagináveis que nela se cruzam – e que são o pano de fundo da investigação de Lionel -, mantêm a atenção no ponto, mas o mais deslumbrante é mesmo o acesso que o leitor tem ao seu mundo interior: “A Tourette ensina-nos que as pessoas ignoram e esquecem, ensina-nos a ver o mecanismo de fabrico da realidade empregue por elas para afastar o intolerável, o incongruente, o incómodo – ensina-nos isto, porque somos nós que manejamos, à nossa maneira, o intolerável, o incongruente e o incómodo”.
Cruzamento entre o romance literário e o policial clássico, num mundo de gangsters onde um deles se torna o investigador principal e sofre de Tourette, “Os Órfãos de Brooklyn” supera o comum e torna-se único pela força e autenticidade da sua principal personagem, bem como pela descrição notável do seu mundo invisível, tão bem descrito por Jonatham Lethem: “Por acaso já repararam que relaciono tudo com a minha Tourette? Pois, adivinharam, é um tique. Contar é um sintoma, mas contar sintomas é também um sintoma, um tique plus ultra. Tenho meta-Tourette. Penso nos tiques, o meu espírito corte e os pensamentos tentam tocar em todos os possíveis sintomas. Tocar, tocar. Contar, contar. Pensar, pensar. Mencionar que menciono a Tourette. É como falar de telefones ao telefone, ou meter cartas no marco de correio. Ou como um piloto de rebocadores cuja anedota preferida trate de rebocadores verdadeiros”.
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