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Os Meus Homens, Deus Me Livro, Crítica, Dom Quixote, D. Quixote, Victoria Kielland
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“Os Meus Homens” | Victoria Kielland

Por Isabel Daires · Em 10/11/2023

A primeira assassina em série identificada nos Estados Unidos da América – e, até hoje, uma das mais prolíficas – foi uma migrante norueguesa. Brynhild Størset, também conhecida como Bella Sørensen e Belle Gunness, terá assassinado mais de 40 pessoas, incluindo dois maridos e uma série indeterminada de homens que descobria através do correio sentimental da imprensa da diáspora norueguesa. Victoria Kielland utiliza estes factos como inspiração para o seu segundo romance, “Os Meus Homens” (Dom Quixote, 2023), mas o resultado não é uma biografia romanceada, nem um típico policial nórdico. Em vez disso, o que nos oferece é uma deambulação visceral pelos meandros de uma mente em queda livre na loucura, atormentada pelo desejo de amor, fervor religioso e uma tensão febril que a impele à violência.

A apresentação da jovem Brynhild prenuncia de forma bastante clara a tragédia grotesca que está para vir: em 1876, com 17 anos de idade, encontra-se num local chamado Rødde Gård (Quinta Vermelha), a ser empurrada para baixo, com a cabeça “rodeada de escuridão”, a cara virada para a almofada da cama. Está perdidamente apaixonada pelo Morgado da casa onde trabalha como criada, sofre com anseios para além da sua compreensão, e sente todos os estímulos que a envolvem com uma intensidade angustiante: as luzes e as sombras, o calor, os odores, a textura das coisas e a presença de Deus entre elas. O final súbito e violento da relação é, sem dúvida, traumatizante, mas os indícios de transtorno mental já estavam presentes: “Tinha muito para dar, mas era como se os olhos tivessem apreendido de mais e ela já não conseguisse distinguir as coisas umas das outras, as sombras estavam por todo o lado e o ar que tinha nos pulmões não encontrava modo de sair”.

Uma vez que “o amor matara tudo o que conseguira”, Brynhild regressa à casa paterna, num lugar pobre e triste, assolado pela fome e pela doença, onde “não havia misericórdia nem perdão, apenas decadência e frio e ratos nas paredes”. A partida para os EUA, a mudança de nome e os casamentos proporcionam oportunidades para forjar uma nova identidade – até cada homicídio cometido representa um recomeço –, mas a pergunta “quem és tu, de verdade?”, obsessivamente repetida ao longo do livro, com variações ocasionais, permanecerá sem resposta.

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Se a fronteira entre verdade e mentira é difusa para ela, sê-lo-á ainda mais para os leitores. A narração, embora feita sempre na terceira pessoa, nunca nos permite aceder à realidade sem a intermediação da percepção da protagonista, excepto nos parágrafos finais, o que nos faz lamentar que certas incógnitas nunca sejam esclarecidas, pelo menos neste contexto ficcional – por exemplo, o que saberiam e pensariam as três adoradas filhas adoptivas. Todavia, tanto a beleza como a crueldade da prosa dependem muito do registo altamente sensorial das impressões da protagonista, bem como da sua ambiguidade. Mais do que a objectividade de uma história sangrenta, o fulcro deste romance – já premiado na Noruega – reside no desbravar dos abismos de um espírito que se sente abandonado pelo mundo e se entrega ao desejo mórbido de algo inominável que nunca encontrou.

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Isabel Daires

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