“Esta história não terá os ingredientes que apreciam os devotos do chamado romance histórico. Não se inventaram enredos, intrigas ou personagens. Relataram-se apenas factos, que, muitos deles, nunca vieram a público. E é nessa novidade que assenta a verdadeira razão e o possível mérito deste livro, que podia ter sido escrito há muito tempo, mas que só agora alguém resolveu escrever.”
Assim reza parte do aviso prévio ao texto principal do novo livro de Isabel Lencastre, “Os Meninos de Palhavã” (Oficina do Livro, 2023) – com o subtítulo As Vidas Atribuladas dos Bastardos de D. João V. Porém, após iniciada a leitura, cedo se torna evidente que ele tem tudo para agradar aos apreciadores de bons romances históricos, mesmo que não invente nada, pois a realidade é rica quanto baste em factos improváveis, intrigas e personalidades caricatas.
Na origem dos acontecimentos aqui relatados está a figura do vigésimo quarto rei de Portugal, D. João V, cujos “excessos amorosos” deram que falar, tendo até ficado registados na correspondência de um espião ao serviço de uma corte estrangeira. Além dos seis descendentes legítimos, estima-se que terá gerado muitos outros, com diversas amantes. O número destas, embora incerto, foi certamente elevado, abrangendo não só damas da corte e as habituais actrizes e cantoras, mas também mulheres com perfis mais surpreendentes, incluindo freiras “que, durante certo período da sua vida, ia assiduamente visitar ao Mosteiro de Odivelas”, originando vários escândalos.
Perante a degradação do seu estado de saúde – facto que alguns atribuíram ao abuso de afrodisíacos – e vendo a morte cada vez mais próxima, D. João V reconheceu por escrito a paternidade de três rapazes, graças aos apelos de um eclesiástico, Frei Gaspar da Encarnação, que fora na infância “companheiro de estudos e brincadeiras” do monarca e os tomara por pupilos. Todavia, o reconhecimento público da filiação só chegou anos mais tarde, no reinado do filho legítimo, D. José, após a morte da rainha-mãe, a ousada insistência de Frei Gaspar, e o esgrimir de pareceres de várias autoridades na matéria.
O resto da vida dos três bastardos – conhecidos como “Meninos de Palhavã” por terem residido no palácio com esse nome – será marcado pelas intrigas que agitaram o reino, bem como pelas acções do poderoso ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal. O mais novo foi inquisidor-mor e colaborou na cruzada do marquês contra os jesuítas, mas isso não o impediu de cair em desgraça. Por seu lado, o mais velho viu goradas as perspectivas de ascensão ao trono através de um casamento com a sobrinha – a futura Rainha D. Maria I. Ambos passaram anos desterrados sob acusações de sedição e, mesmo após a libertação, jamais viram as suas pretensões satisfeitas.
Em oposição, o irmão do meio, nomeado arcebispo de Braga, mostrou-se “um súbdito obediente e inofensivo”, o que lhe permitiu levar uma vida confortável, dedicada “por inteiro à sua igreja e à sua cidade”, ao mesmo tempo que procurava apaziguar os espíritos insatisfeitos dos irmãos.
A partir de material de arquivo e bibliografia académica, a autora debate polémicas e apresenta as suas próprias descobertas, aliando esse trabalho a uma desenvoltura narrativa que dá cor e vida ao passado, expondo-o com tal clareza e paixão pela História que cativa a atenção, para não falar da imaginação.
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