Ao contrário do que o nome poderá sugerir, não iremos encontrar aqui fotos de animais de grande porte ou descrições detalhadas sobre fisionomia, hábitos alimentares ou se existe ou não um risco de extinção. Em “Os Grande Animais” (Abysmo, 2020), Inês Fonseca Santos mostra em cinco actos que “os poemas apanham-se como doenças mas têm o poder curativo”, podendo, em muitos casos, ser prescritos como ansiolíticos ou destinados a refrear estados de alma mais febris.
No primeiro acto, percorremos uma estrada asfaltada para dar de caras com Kate, cujo pai tinha o poder de fazer nevar dentro de um livro. Uma mulher sem intenção clara de matar mascom um sonho antigo, onde o leitor morria “muitas vezes atropelado/ sempre no mesmo sentido, colhendo frutos à beira da estrada”. Arriscam-se poemas sem coletes à prova de bala, revelando que o poema tende a criar hábitos e a permane cer sempre o mesmo lugar. Por aqui se passeiam animais como o cavalo, “que cospe quem o monta”, ou a barata, “que silenciosamente escapa ao pé de quem a pisa”.
Herdam-se vestidos, colocados “uns por cima dos outros como escamas”, num território onde o vencedor é não quem recorda mas sim aquele com o poder transformador da criação. Escrevem-se poemas a Dreyer no escuro reconfortante do cinema, onde o palco pertence por inteiro a Lídia, uma mulher decidida que entra em cena para dançar agarrada a um poema.
Prosseguimos definindo um caso como “uma montanha infame de embaraços”, para logo depois defender, recorrendo a análises e radiografias, que “a infelicidade engorda mais do que vinte tabletes de chocolate Regina”. Entramos numa casa feita “de todos o mais perecível material”, para escapar a um fogo que traz à memória “a ferida aberta da infância ainda no ventre”. No céu esvoaçam papagaios que não são loiros “mas entregam cartas ao meu namorado”. Ou então morcegos, “espiões cegos, inquiridores da casa”.
Descobrimos animais nascidos do receio do desconhecido, por um caçador da cidade que, com “a espingarda ao ombro/a faca entre os dentes/a caneta presa na orelha”, transforma arranha-céus em girafas e camiões em rinocerontes. E, mesmo sabendo que “as poetas portuguesas vestem pior” do que as outras, há tempo para se escrevinhar uma carta de amor e desalento ao 25 de Abril, onde “uma burguesa endividada, uma nobre de brasão no prego”, lhe pede um regresso sebastiânico: “vem-te de novo de pau feito, por favor, e de épico tesão dá cabo disto”. Não falta um poeta que usa a loucura como camisola interior, dragões “de fumo e fogo” ou gatos que fumam charros com as “patas sujas de susto e lama”.
No acto final, redige-se uma carta a um “fantasma palpável e estúpido”, que partilha o primeiro nome com Cesariny. Uma carta feita de morte, arrependimento e o “desafecto dos sonhos”.
Neste livro feito de poemas que integraram antologias e revistas literárias, Inês Fonseca Santos roda vinis dos The Smiths e projecta bobines de 35mm assinadas por Carl Dreyer, arranjando ainda tempo para visitar a casa de Manuel António Pina ou cumprimentar boa gente como Sérgio Godinho ou Georges Bataille, sempre na companhia das ilustrações a preto e branco – e com a sombra de Dalí – de João Maio Pinto. “Em todos os prédios altos do mundo,/os poetas adormecem enfim o desprezo/pelas letras grandes. Pelos bichos raros”. E também o leitor, seja mais devoto ou avesso à poesia, descobrirá aqui uma quinta de animais fascinantes. E versos raros.
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