Tal como acontece na música, a literatura tem também o hábito de escolher, para os seus autores mais memoráveis, um greatest book: aquele de que se fala sempre que o nome do autor surge numa conversa, fazendo com que outros se tornem, muitas vezes, meras notas de rodapé. Entre esses que permanecem quase invisíveis, adormecidos numa segunda linha que vai marinando em estado indie, há outros que desafiam os gigantes acordados ao seu lado. No caso de Herman Mellvile, autor do épico “Moby Dick”, esquecemo-nos muitas vezes de “Bartleby”, pequena pérola onde um narrador, que ajuda homens ricos a lidar com hipotecas e títulos de propriedade, relata a história do homem mais estranho que conheceu. E, quanto ao chileno Roberto Bolaño, ficamo-nos normalmente pelos quatro algarismos de “2666”, esquecendo a jornada de Arturo Belano e Ulisses Lima, “Os Detectives Selvagens” (Quetzal, 2018 – reedição), que partem em busca do paradeiro de Cesárea Tinajero, a misteriosa escritora desaparecida no México nos anos que se seguiram à Revolução, a responsável pela criação do realismo visceral.
Um livro que, de uma ponta à outra – e apesar de nele não se descobrir um verso -, é atravessado pela poesia, a verdadeira, aquela que “deixa-se pressentir, anuncia-se no ar, como os terramotos que, segundo dizem, pressentem alguns animais especialmente aptos para tal propósito“. Uma poesia mexicana que, grita-se e não em surdina, urge mudar, tendo-se tornado “insustentável, entre o império de Octávio Paz e o império de Pablo Neruda. O que equivale a dizer: entre a espada e a parede“.
No centro de tudo está a literatura, caminhando sempre como um funâmbulo, no fio da navalha, com um humor que mais do que negro surge feroz e mordaz – como nos desenhos/anedota que se encontram na parte final. E, se tanto se vai escavar ao quintal de Ernesto San Epifanio, que definiu a literatura entre heterossexual, homossexual e bissexual – os romances eram geralmente hetero, a poesia absolutamente homo e os contos bi -, há também um cardápio, redigido por Joaquín Font, para os fins da literatura – onde se encontra aquela que os protagonistas deste livro procuram:
“Há uma literatura para quando se está aborrecido. Abunda. Há uma literatura para quando se está calmo. Esta é a melhor literatura, acho eu. Também há uma literatura para quando se está alegre. Há uma literatura para quando se está ávido de conhecimento. E há uma literatura para quando se está desesperado. Esta última é a que quisera, fazer Ulisses Lima e Belano.”
Nesta viagem que decorre ao longo de vinte anos, de 1976 a 1996, visitam-se diferentes geografias: México, Nicarágua, Estados Unidos, França, Espanha, Áustria, Israel, África e até mesmo Portugal, ainda que Lisboa seja descrita pela imaginação de alguém “escondido no interior de um barril vazio“:
“…por fim, zarpámos e deixámos para trás a laboriosa capital portuguesa, que eu imaginava, nos meus sonhos febris, como uma cidade negra, com gente vestida de negro, com casas feitas de ébano, ou de mármore negro, ou de pedra negra, talvez porque no meu delírio febril tivesse alguma vez pensado em Eusébio, a pantera negra daquela selecção que tão bom papel desempenhara no Mundial de Inglaterra de 66…”
Ainda mais do que em “2666”, Bolaño mostra aqui todo o seu engenho narrativo, criando um falso romance policial e imensamente existencialista, dividido em três partes, onde os detectives/protagonistas estão quase sempre afastados dos holofotes – ou, quando assim o acontece, iluminados pelas palavras de outros.
Na primeira parte, intitulada Mexicanos perdidos no México (1975), o leitor acede ao diário de Juan García Masero, um jovem de dezassete anos chegado recentemente à Cidade do México, num registo marcado pelo humor que precede a era adulta.
Segue-se Os Detetives Selvagens (1976-1996), a segunda e central parte do livro, onde García Madero dá então lugar a Arturo Belano e Ulisses Lima, os verdadeiros detectives do livro, que surgem narrados sob a óptica de várias pessoas, num registo entre o diário e a entrevista, a confissão e a introspecção, que transporta esta dupla para o território do mito. É aqui que os Belano e Lima viajam até à casa de Amadeo Salvatierra, o único que ainda guarda uma revista na qual a poetisa Cesárea Tinajero, na década de vinte, havia publicado um dos seus poemas.
A terceira e derradeira parte, Os Desertos de Sonora (1976), regressa ao diário de García Madero, mas com o twist de transformar tudo isto numa narrativa com uma costela arrancada a Kerouac, quando Arturo Belano, Ulisses Lima e Lupe, uma prostituta que estes pretendem salvar, são perseguidos através do deserto mexicano, quando estão muito perto de desvendar a história de Cesárea Tinajero, mãe do realismo visceral.
Imprevisível e de ar inacabado, original e comovente, “Os Detectives Selvagens” são Roberto Bolaño em estado de graça, o princípio do nascimento de uma lenda literária.
Nota: Uma edição que apresenta, em relação à anterior da Teorema, uma paginação mais user friendly.
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