Kobayashi Issa, um dos nomes que integra o panteão literário japonês que ficou conhecido como “Os Quatro Grandes da Poesia Haiku” – juntamente com Bashô, Buson e Shiki -, teve tudo menos uma vida fácil, com contornos que poderiam mesmo levar a acreditar que alguém com um poder imenso lhe tinha lançado uma maldição.
Nascido em Junho de 1763 na aldeia de Kashiwabara, província de Shinano, bem no meio do Japão, foi o primeiro filho de um casal de proprietários rurais de classe média. Um lugar que iria influenciar, pela presença de montanhas, vales e rios, toda a sua poesia. Ficou órfão de mãe aos 3 anos de idade, acontecimento que o levou, aos 40, a escrever este haiku:
a minha mãe morta –
todas as vezes que vejo o mar
todas as vezes
Será entregue aos cuidados de uma avó paterna, com quem criará fortes laços emocionais. A madrasta, com quem o pai terá depois um filho, rejeita-o, fazendo-lhe uma mossa na alma que nunca teve conserto. A sua educação é entregue a Shimpo, um professor da aldeia. Na sua ida para Tóquio (então Endo) terá sido, presume-se, copista num templo budista. Os primeiros haikus surgem por volta de 1787, quando frequentava uma escola de poesia fundada por Chikua, um discípulo de Bashô. Foi aqui que tomou a decisão de adoptar o nome de Issa – que tem o significado de “chávena de chá”. Parece que teve a ver com, a dado momento, ter reparado numa bolha à superfície do chá que estava a beber. Um momento que ficou imortalizado num haiku:
chega a primavera
e Yatarô renasce
como Issa
Aso 39 anos de idade assume-se como seguidor do budismo, vestindo – um pouco à imagem de Bashô – o hábito de monge laico e partindo em peregrinação. Trinta e sete anos depois regressa a Endo e à casa de infância, para estar com o pai nos seus últimos momentos de vida. A madrasta recusa partilha com ele a herança, regressando a Endo para se lançar numa carreira como professor de poesia. Acaba por conseguir, com a ajuda de um advogado, receber parte da herança, e pela primeira vez constrói um lar a que chamará seu.
Teve vários filhos com as duas primeiras mulheres, todos eles mortos precocemente. Casa-se pela terceira vez em 1826, aos 63 anos. Um ano depois, a casa onde vivia com a mulher é destruída por um incêndio. Morre aos 64 anos, vitimado por uma doença paralisante, não chegando a conhecer a sua filha.
Do grupo dos Quatro foi ele o mais prolífero, tendo escrito perto de 20000 haikus, para lá de trabalhos noutras vertentes literárias. É, também, aquele que mais usou os animais como protagonistas da escrita poética. “Os Animais” (Assírio & Alvim, 2019), livro que nos chega numa edição em capa dura com selecção, organização e versões portuguesas de Joaquim M. Palma, está dividido em três partes: haikus sobre uma espécie animal; haikus sobre duas ou mais espécies animais; haikus sobre espécies animais não identificadas. Oferece, também, uma síntese cronológica da vida do autor, bem como alguma biografia para quem quiser conhecer mais a fundo a vida deste autor japonês, que teve sempre a tragédia a seu lado. “Os Animais” centra-se num fragmento importante e essencial dos haikus de Issa, que corresponderá a cerca de 1/10 da obra completa do autor japonês – o resto virá, quem sabe, mais tarde. Para guardar ao lado de outras edições essenciais, todas elas editadas pela Assírio & Alvim: “Aves dormindo enquanto flutuam“, de Masaoka Shiki; “O Eremita Viajante“, de Matsuo Bashô; e “Os Quatro Rostos do Mundo“, de Yosa Buson.
Cuco da montanha
embriaguei-me
e o teu canto é um protesto
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