Publicado originalmente em 2003, “Órix e Crex” (Bertrand Editora, 2010 – reedição em 2020) é um daqueles romances que possuem a capacidade de desconcerto e inquietação, conduzindo o leitor a um território onde, decididamente, não se irá sentir em casa. Um livro que, segundo a canadiana Margaret Atwood, está mais próximo da ficção especulativa ou de um romance de aventuras do que da ficção científica. Mesmo que, por vezes, seja preciso vestir o fato de astronauta para respirar neste cenário de tons pós-apocalípticos.
No centro do livro está o solitário Homem das Neves, em tempos conhecido como Jimmy, que parece ser o único habitante humano de um mundo onde porcos, lobos e outros animais são agora espécies bem diferentes daquelas que conhecemos. Jimmy vive em cima de uma árvore, descendo apenas para procurar comida embrulhado num lençol quase sempre encardido, num mundo onde “ninguém em lado nenhum sabe que horas são”. A sua história pessoal, revelada como num diário de viagem em construção, encontra-se dominada por duas personagens: Órix, a mulher que conquistou o seu coração, que é agora – e de forma permanente – a voz da sua (in)consciência; e Crex, amigo que terá sido do peito, isto antes de se tornar líder de uma experimentação genética e de uma ginástica e engenharia farmacêuticas que poderiam ter corrido melhor. É que aos porcos, neste mundo, só falta mesmo voar.
Para os Filhos de Crex, seres de olhos verdes e sem o empecilho da barba, o Homem das Neves é um professor, um cuidador. Um guru de objectos estranhos resgatados às águas, o último de uma espécie. Dessa forma, quando a fome ameaça instalar-se e já com todos os recursos da geografia mais próxima esgotados, Jimmy terá de regressar às ruínas da QuintadÓrgãos, complexo onde poderá ter nascido o seu fim do mundo, lugar vigiado por animais híbridos e implacáveis no qual trabalharam ambos os seus pais: a mãe como microbióloga e o pai como um dos principais arquitectos do Projecto Bacorão, cujo objectivo era o de “desenvolver uma série de órgãos perfeitos, de tecido humano, num porco transgénico que servia de hospedeiro. Esses órgãos seriam facilmente transplantados e evitariam rejeições, mas também seriam capazes de se defender de ataques de vírus e micróbios oportunistas, dos quais todos os anos surgiam novas estirpes”.
Se, em “Y: The Last Man” – série de comics assinada por Brian K. Vaughan -, tínhamos um único homem e um macaco sobreviventes a uma súbita, espontânea e simultânea morte de todos os animais e humanos com cromossoma X – as mulheres sobreviveram para contar -, aqui não resta ninguém a não ser o Homem das Neves, professor de estranhos seres, fugitivo de animais tresloucados, alguém que nos dias de hoje chamaríamos de louco ou sem-abrigo. Alguém que, como que num twist ao “Fahrenheit 457” de Ray Bradbury, carrega um livro interior de coisas assimiladas, mas sem nunca conseguir identificar a fonte.
A estrutura do livro pode parecer confusa, mas Margaret Atwood nunca perde o pé e, numa história atravessada por questões como pornografia infantil, tortura, electrocussões, execuções públicas através de injecções letais ou uma sobrepopulação que ameaça a extinção, o foco da autora parece ser mais o de deixar uma mensagem vincadamente política: se tiverem de colocar o destino do mundo nas mãos de alguém, muito cuidadinho com as grandes corporações e o lado dark web da Ciência. Virada a última página, no preciso momento em que o leitor julgava ter nas mãos a última peça do puzzle, a inquietação permanece: haverá espaço para um novo futuro ou o desastre é uma vez mais iminente? “Quando é que se tinha passado das marcas, quando é que se tinha ido longe demais?”.
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