“É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro possuidor de uma grande fortuna necessita de uma esposa.
Por pouco conhecidos que sejam os sentimentos ou perspetivas de tal homem ao se juntar a uma nova vizinhança, essa verdade está de tal modo enraizada nas mentes das famílias que naquelas redondezas residem que o homem em questão é considerado legítima propriedade de uma das suas filhas.”
Assim começa “Orgulho e Preconceito” (Porto Editora, 2021), uma das obras mais célebres da britânica Jane Austen (1775-1815), deixando bem patente a ironia com que a autora trata o seu tema principal: uma sociedade regida por normas estritas, que transformam homens e mulheres em peças de um jogo de estratégia matrimonial.
No cerne da história, encontramos a família Bennet, composta por um casal e as suas cinco filhas. Com vinte anos, Elizabeth Bennet, a protagonista, é a segunda mais velha. Graças ao espírito independente e ao sentido de humor, é ao mesmo tempo a preferida do pai, que observa nela “uma perspicácia da qual as irmãs carecem”, e a menos querida da mãe, uma “mulher de entendimento trivial, cultura limitada e temperamento incerto”.
Enquanto Elizabeth poderá ser um alter ego de Jane Austen, as irmãs representam tipos de figuras femininas que a autora provavelmente conheceu: Jane, a mais velha, é a beldade amável; Mary, a terceira filha, procura compensar a falta de atractivos físicos com a exibição, nem sempre oportuna, de dotes intelectuais e artísticos, de tal maneira que soa sempre pretensiosa; por sua vez, Lydia e Catherine, as mais novas, não passam de raparigas estouvadas.
O mundo em que estas jovens vivem não lhes é favorável. A propriedade da família Bennet é “um morgadio a favor de herdeiros masculinos”, o que significa que, após a morte do patriarca, um primo poderá expulsar a esposa e as filhas, privando-as dessa fonte de rendimento. Além disso, estando muitas oportunidades académicas e profissionais vedadas às mulheres, um bom casamento, do ponto de vista financeiro, constitui a melhor protecção contra um futuro precário.
Neste contexto, o interesse e o sentimento nem sempre coincidem. Jane tem a sorte de amar o jovem solteiro e rico que, no início da narrativa, adquire casa no meio rural onde a família Bennet reside, mas a acentuada diferença de estatuto das famílias é um obstáculo ao desenvolvimento da relação. Mais complexa ainda é a dinâmica que se estabelece entre Elizabeth e a principal personagem masculina, o Sr. Darcy. Tomado por orgulhoso, é alvo do preconceito que Elizabeth alimenta contra ele desde a má impressão causada no primeiro encontro, até os acontecimentos a obrigarem a rever as suas opiniões.
A autora era uma observadora arguta, exagerando aqui os traços de certos tipos sociais, de modo a satirizá-los. Na sua galeria memorável de figuras secundárias, não faltam os hipócritas, os aduladores servis e os arrivistas cuja simpatia esconde graves defeitos de carácter. A sua visão desapiedada, mas bem-humorada, das relações humanas, que preserva a esperança no amor contra todas as contrariedades, justifica plenamente que este clássico continue a ser uma leitura deliciosa nos dias de hoje.
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