Imaginemos a cena: dois jovens viajantes bebem vinho rasca num escuro e rançoso pub, em Dublin. Nisto, são abordados por um velhote que afirma chamar-se Pierre Menard, nome de personagem de um famoso conto do escritor argentino Jorge Luís Borges. O ancião suspeito afirma que tem em sua posse os últimos textos de Borges, escolhendo ao acaso um dos jovens para ser o fiel depositário das folhas amarelecidas, na condição de só as publicar daí a 20 anos.
Ao entrar nas páginas seguintes, apercebemo-nos de que o livro – como um puzzle no qual faltam algumas peças – abre a porta, sorrateiramente, a diversos mundos enigmáticos, na forma de contos breves.
“O Universo e Outras Ficções” (Companhia das Ilhas, 2019), de Carlos Alberto Machado, parte então desta premissa duvidosa para construir uma série de divagações intelectuais e simbólicas, com um paladar exótico e um toque de mistério.
Entre outros contos há um esboço de policial hard-boiled à la Raymond Chandler, com um assassinato para resolver – “Despacharam a velha maior da família, parece. Acordou morta. Não sei mais nada. Despacha-te”. Há, também, uma viagem a uma cidade do deserto, de visita a um extenso rol de personagens caricatos – “pagens, criados, bobos, escravos, vassalos, eunucos, indefiníveis, serviçais diversos, secretários, burocratas, diplomatas, estadistas, traidores (…)”, uma vasta e colorida fauna saída das 1001 noites.
Há, ainda, a história do Tio Alexandrino, obsessivo e minucioso documentarista que procurou incansavelmente catalogar e mapear a sua vida, tentando abarcar o universo nos seus extensos e rigorosos registos.
São catorze tropelias literárias que se lêem com prazer – o autor tem o dom de desenhar mundos com uma penada, recorrendo a poucas palavras, frases curtas e precisas, e a subtextos crípticos e meta-literários, que adoçam o mistério destas saborosas ficções.
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