Solilóquio: do latim soliloquium, substantivo masculino que significa monólogo ou acto de falar sozinho. Agora que despachámos a definição do título, concentremo-nos no assunto principal deste livro: o Rei Leopoldo.
Espalhadas pela Bélgica, país que reinou entre 1865 e 1909, existem 13 estátuas e bustos de Leopoldo II, para além de inúmeras ruas, praças e jardins com o seu nome. Num período em que se derrubam estátuas por todo o mundo, a recente vandalização dos monumentos em honra do segundo rei dos belgas não foi propriamente uma surpresa para ninguém. Bem vistas as coisas, a figura do Rei Leopoldo II não é apenas problemática hoje — já o era no seu tempo. Prova disso é “O Solilóquio do Rei Leopoldo” (Guerra & Paz, 2021) de Mark Twain.
Ponhamos os pontos nos is: o reinado de Leopoldo II foi um dos mais sangrentos regimes colonialistas na história da Europa. Em 1885, sob o disfarce da filantropia e a promessa de estabelecer o comércio livre no coração de África, Leopoldo convenceu os estados europeus, inclusive o português, a entregarem-lhe (a título pessoal e não à Bélgica) o “Estado Livre do Congo”, onde o monarca viria a instaurar o seu reino de crueldade. Leopoldo II foi o capataz da pilhagem dos recursos naturais da África central e o responsável pela mutilação, violação e massacre dos milhões de congoleses que não cumpriram as quotas de recolha de borracha impostas pelo exército privado do rei.
Em “O Solilóquio do Rei Leopoldo”, Mark Twain satiriza ferozmente o rei belga: coloca-o a falar sozinho e, acima de tudo, a ponderar sobre a própria obstinação que, em última instância, resultou em “meio milhão de homicídios por ano, durante vinte anos”. No decorrer do seu monólogo introspectivo, o Rei Leopoldo faz lembrar Kurtz do “Coração das Trevas” de Conrad, mostrando-se cínico e neurótico, porém eloquente. Impenitentemente, o orador gaba a própria astúcia e lança injúrias aos críticos, jornalistas e “missionários abelhudos” que levaram os relatos daquela matança hedionda aos ouvidos da Europa.
Este famoso panfleto de Twain surge em 1905, numa altura em que os crimes do soberano belga iam sendo expostos pela imprensa internacional, que publicava descrições horrendas e provas fotográficas das atrocidades cometidas pelos capangas do monarca no Congo. “O Solilóquio do Rei Leopoldo”, o mais recente título da colecção Livros Negros da Guerra e Paz, reproduz alguns desses documentos e imagens, e inclui ainda um pequeno texto crítico de enquadramento de Manuel S. Fonseca.
Embora nunca tenha posto os pés em solo africano, Leopoldo II marcou indelevelmente o território que actualmente corresponde à República Democrática do Congo. Enquanto os belgas debatem agora a melhor forma de exorcizar a terrível herança de Leopoldo, fica por encontrar um método eficaz para preservar a memória dos congoleses assassinados nas plantações de borracha. Em todo o caso, “O Solilóquio do Rei Leopoldo” será sempre um documento fundamental para se conhecer o ímpeto imperialista e o apetite genocida de Leopoldo II, quer caiam as suas estátuas, se ergam memoriais às vítimas ou fique tudo na mesma.
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