Decorridos 30 anos sobre a estreia literária de Teolinda Gersão, é reeditada a sua primeira obra, “O Silêncio” (Porto Editora, 2021), publicada pela primeira vez em 1981 e distinguida com o Prémio de Ficção do Pen Club.
Conhecendo hoje a longa e multipremiada carreira da autora, é um prazer regressar ao início e encontrar nele uma abordagem audaciosa de certos temas recorrentes, como a identidade feminina e os mecanismos de opressão social.
A narrativa começa com algo que pode confundido com uma história de amor e termina em ódio. O protagonista masculino é Afonso, um médico de idade madura que troca um casamento convencional e uma casa “forrada de penumbra e silêncio” por uma relação com uma pintora jovem, Lídia, que o faz sentir-se mais vivo, apesar de – ou talvez precisamente por essa razão – a julgar insegura e “quase ignorante de si mesma“. O início do romance é, para ele, um triunfo, mas a tensão que desde logo se vislumbra nunca desaparece.
A esposa abandonada, Alcina, é caracterizada como uma “mulher silenciosa”, sendo o seu silêncio tão absoluto que apenas a encontramos na mente de outrem. Ironicamente, é para um silêncio igual que Afonso procurará remeter Lídia, não pela violência física, mas através da desvalorização constante da sua voz.
Lídia procura uma forma de encontro através das palavras. É com elas que partilha a sua angústia perante uma sociedade alicerçada na eficiência e na ausência de sonho, da qual foi banida a verdadeira comunicação. Entre outras divagações, recorda a mãe, uma estrangeira que, num esforço de integração, mudou de nome e resignou-se a repetir, durante anos, para o marido e a família deste, gestos e palavras aprendidos, até que a tensão acumulada estalou, devolvendo-a ao seu isolamento, do qual emergiam palavras desconhecidas que soavam absurdas, loucas e perigosas.
Porém, Afonso interessa-se pouco pelas recordações de Lídia. Paternalisticamente, considerando-se paciente com a sua escolha de não escutar, corta-lhe a palavra, ou reage com ironia ao seu discurso, desvalorizando-o com um sorriso indulgente e chegando a brandir a conveniente acusação de loucura. Será talvez uma interpretação benévola aquela que atribui o comportamento de Afonso ao medo de se deixar conduzir pelo amor “até ao limite de si próprio, de destruir tudo o que fica para trás e criar em seu lugar outra coisa”. Entre as palavras cruzadas, arrumadas em linhas e colunas, que ele aprecia resolver, ou a música “sem inquietação e sem perguntas” que ouve, Lídia introduz uma nota discordante que abre “brechas na perfeição fictícia das coisas”. O desarrumar da casa é a sua forma de resistência ao papel de género que se espera que ela desempenhe, mas apesar de toda a rebeldia, pouco a pouco, até esta mulher se habitua a responder “em nada” quando o homem lhe pergunta no que pensa. Em pensamento, preserva a liberdade da água que corre, a qual surge fortemente associada à identidade feminina.
A autora entrelaça com mestria os fios do sonho e da realidade, compondo blocos de texto que funcionam como peças de uma cronologia que se constrói durante a leitura. Também a sua escrita flui como água, traçando delicadamente os contornos do mundo psíquico das personagens, com uma poesia contida que oferece aos leitores vários níveis de interpretação, nos quais a beleza do amor se conjuga com a tristeza da sua morte.
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