Vinte e dois anos separaram as crónicas “O Professor Gaivota” (1942) e “O Segredo de Joe Gould” (1964), ambas escritas por Joseph Mitchell para a revista The New Yorker, publicadas numa secção intitulada Perfis, que mostrava algumas das mais exóticas e variadas personagens que habitavam a cidade de Nova Iorque, como uma mulher barbuda, o dono de um circo de pulgas amestradas e, claro Joe Gould, que viria a ficar imortalizado no livro de Joseph Mitchell intitulado “O Segredo de Joe Gould” (D. Quixote, 2017 – reedição), composto precisamente por essas duas crónicas – a última escrita por Mitchell sete anos depois da morte de Joe Gould.
“Sou a maior autoridade dos Estados Unidos em matéria de viver sem nada“. As palavras pertencem ao próprio Joe Gould, o auto-proclamado último rei dos boémios, constantemente atormentado por uma pouco santa trindade de maleitas: fome, ressacas e o estatuto de sem-abrigo.
Filho de uma das mais antigas famílias de Massachussets, com licenciatura obtida em Harvard, Gould decidiu em 1916 romper com os laços e tradições familiares para rumar a Nova Iorque, onde passado pouco tempo iniciou a sua vida de vagabundo. Na sua cabeça, todo o espaço estava preenchido com a ideia de escrever uma monumental “História Oral do Nosso Tempo”, qualquer coisa como uma recolha de diálogos, discussões de rua, conversas escutadas e transcritas em bares e albergues, biografias e outros apontamentos diversos. Ou, nas palavras iluminadas de Michell:
“A História Oral é uma grande salsada e uma salganhada de diz-que-diz, um repositório de tagarelices, uma miscelânia de boatos, de mexericos, de paleio, de tretas, de lérias, de zunzuns, fruto, segundo os cálculos de Gould, de mais de vinte mil conversas. Incluem-se aí as irremediavelmente incoerentes biografias de centenas de vagabundos, relatos de marinheiros errantes encontrados em bares da South Street, as pavorosas descrições de experiências hospitalares e clínicas (…), resumos de inumeráveis arengas em Union Square e Colombus Circle, testemunhos de convertidos no comício de rua do Exército de Salvação, assim como as opiniões embrulhadas de uma data de oráculos de bancos de jardim e especialistas do copo.”
Gold vivia obcecado com esta História Oral, 11 vezes maior do que a Bíblia e com a última página sempre em aberto, escrita em cerca de duzentos e setenta cadernos de linhas baratos, “todos sebentos e com nódoas de café, gordura e cerveja“.
Aquando da sua morte, em 1957, resultante “de arteriosclerose e de senilidade“, conseguiu-se apenas “um poema, o fragmento de um artigo e uma carta a pedir dinheiro“, cabendo a Joseph Mitchell, que esteve envolvido na vida de Gould entre 1942 e 1952, a missão de contar a sua demanda pela História Oral que, apesar do interesse mostrado por alguns editores, nunca chegou a ver a luz da edição.
Para Mitchell, a escrita de Gould “era em muito semelhante ao modo como falava; um pouco rígida, empolada e em geral pouco interessante, mas animada aqui e ali por uma qualquer observação curiosa, por alguma informação, pelo sarcasmo, o ressentimento ou o disparate“.
Neste livro, onde o jornalismo alcança o estatuto de literatura, Joseph Mitchell transporta-nos para a Nova Iorque dos anos 40 e 50, apresentando um retrato da fragilidade humana e da poesia que anima a existência. Um livro único e precioso, que a cada leitura revela novos significados. Obrigatório.
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