Quando pegamos pela primeira vez em “ O Sacrifício da Rainha” (Saída de Emergência, 2021) e vemos Sherlock Holmes associado à jovem adolescente Mary Russel, uma sombra de dúvida insinua-se, mesmo que imperceptível – afinal, somos sempre um pouco condescendentes com este tipo de atrevimento. O mote, aliás, acaba por vir das palavras do novo elemento da parceria: “Eu e Holmes fomos compatíveis desde o início. Ele agigantava-se acima de mim em experiência, mas as suas capacidades de observação e análise nunca me assombraram como acontecia com Watson. Os meus olhos e mente funcionavam precisamente da mesma forma dos dele. Era território conhecido”.
Mary Russel tem 15 anos. Órfã e aspirante a estudante de teologia, conheceu acidentalmente Holmes no ano de 1915, na época pós-vitoriana e princípio da primeira guerra mundial, um momento em que “as pessoas simplesmente não tinham energia para gastar com o decoro”, demorando a compreender que estaria a ser preparada por Holmes para suceder ao mestre: “Não pensava em mim como uma detective; era estudante de teologia e ia passar a vida em exploração, não nos recantos mais obscuros do mau comportamento humano, mas nas alturas da especulação humana a respeito do Divino. Que as duas coisas não deixavam de estar relacionadas não me ocorreu durante anos”.
Ao longo das três histórias/grandes capítulos de “O Sacrifício da Rainha” – Livro primeiro – 10 dias Aprendizado; Livro Segundo – O Internato; Livro Terceiro – A Parceria -, a relação mestre/aprendiz vai-se transformando num dueto cada mais igualitário, com Mary Russel a ganhar uma consciência cada vez maior da defesa dos seus direitos enquanto mulher e, também, a ficar mais pacificada em relação aos seus fantasmas passados.
Laurie R. King é autora bestseller de ficção policial do New York Times, conhecida particularmente pelas suas obras de Mary Russell com Sherlock Holmes e de Kate Martinelli. Foi com o primeiro livro desta ultima personagem, “A Grave Talent”, que foi distinguida, em 1994, com o Edgar Award for Best First Novel. O reconhecimento conquistado permitiu-lhe continuar com o Holmes reinventado, sem que fosse rotulada de escritora pastiche estereotipada. Segundo a autora, a sua inspiração para se dedicar a Holmes poderá ter surgido especialmente de alguns episódios que viu com Jeremy Brett a encarnar o famoso detective, na célebre série Adventures of Sherlock Holmes da Granada Television (41 episódios entre 1984-1994). A ideia dominante foi especular sobre como Holmes poderia ter sido uma mulher num cenário pós-vitoriano, daí evoluindo para Mary Russel, uma jovem feminista de início do século XX que se tornou parceira de Sherlock Holmes.
Para Laurie R. King, Conan Doyle encerrou as histórias de Holmes em 1914 e, portanto, os eventos da sua série não precisam se encaixar nos contos canónicos, o que a leva a tratar Holmes como uma pessoa que continua a evoluir e a adaptar-se a um país mudado pela guerra e pela cultura. Evita, ainda, o risco das anteriores recriações de Sherlock, que procuravam capturar a voz de Watson, substituindo-a pela narração de Russel, na qual Holmes é uma personagem-chave mas onde Mary Russell surge claramente como a protagonista. Espera-se agora que, depois deste aperitivo, a Saída de Emergência continue a publicar as histórias da dupla Russell/Holmes.
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