Convoquemos Durkheim para um tête-à-tête com Fernando Aramburu, sobre as dimensões do suicídio, do egoísmo ao fatalismo, da anomia ao altruísmo. Quase dois séculos passados desde que este grande marco sociológico mobilizou a sociedade e retirou o suicídio da clausura da censura social, deixando-o à mercê de visões tecnocráticas, a literatura continua hoje a luta pela aceitação do tema, a clareza da discussão e o direito à opinião discrepante. Será morrer uma mera operação filosófica de passagem do ser ao não ser ou um acto de suprema liberdade?
“Estou cansado e talvez até aborrecido de desempenhar um papel num filme cujo argumento não me aquece nem me arrefece; um filme que me parece mal concebido e mais mal-executado.”
Em “O Regresso dos Andorinhões” (D. Quixote, 2022), Fernando Aramburu – autor de “Pátria” (2016), considerado um dos livros mais impressionantes da literatura espanhola contemporânea – recebe-nos com textos de uma sinceridade descarnada, redigidos a partir de impressões quotidianas e velhas recordações de um personagem central. Os 54 anos do protagonista são revividos em flashes breves e intensos, evocações de uma vida padrão, desde a infância, a criação da sua própria família, a profissão, a vida social, a intimidade mais profunda. A honestidade do relato é desarmante, como se o narrador nos deixasse espreitar as vísceras do personagem, os seus sedimentos mais escondidos, a decomposição do seu ser nos mais incautos pensamentos, emoções e comportamentos. Toni – não propriamente uma personagem convencionalmente simpática – é professor de filosofia e toma a decisão de suicidar-se um ano depois. A partir de agosto de 2018, escreve num diário todas as noites o registo do mundo que o rodeia, deixando o leitor entrar nos seus pensamentos mais obscuros e nas memórias de toda a sua vida.
Decidido a não prolongar a sua existência para além de determinada altura, o protagonista dispõe-se a revelar-se nos mais recônditos espaços da sua existência. Durante um ano liberta-se de objectos e memórias, ao mesmo tempo que, mantendo uma funcionalidade extraordinária, prossegue nos seus diversos papeis sociais, como se planeasse uma viagem de longo curso. Durante este período, escreve para revelar a sua verdade mais íntima, sabendo-a triste, dolorosa e por vezes até repulsiva – como quando expressa descargas de ódio dirigidas aos que lhe são mais próximos, chegando a desejar-lhes a morte, odiando-os com afecto, amando-os com ódio.
Não se assustem os mais incautos com as 800 páginas do livro, pois a narrativa é extraordinariamente fluida, diversificada e, ainda assim, poderosa, numa viagem à infância, à toxicidade das relações familiares, às guerras silenciosas que utilizam como armas o desprezo, o desvalor e o ódio, a uma estratégia de não-querer que molda gente e os torna exímios na arte da disputa e do desvalor, do dar e, ainda assim, faltar, do ter e, ainda assim, carecer.
A paternidade e a maternidade são esventradas, oscilando entre os episódios de amor e raiva e a incapacidade de reverter o querer em cuidado e amor. Acresce o alerta deixado para o perigo do extremismo que ensombra a democracia, as ameaças com o regresso do autoritarismo, da vigilância moral e da asfixia pelas redes sociais.
A amizade, essa verdadeira flor de lótus, surge como a expressão mais benévola de afecto saudável pela capacidade de dar sem esperar, de receber sem cobrar, de abandonar e voltar. Retrata-se uma duradoura relação de amizade, talvez a única digna desse nome, que conhece todos os seus desígnios, inclusive o de pôr termo à vida, e ainda assim acompanha-o e apoia-o de forma entusiasta.
O discurso Fernando Aramburu é claro e certeiro. Atinge-nos em cheio, obrigando a que revisitemos e organizemos algumas das nossas concepções do que é a vida e do seu sentido. Implícita está a reflexão sobre o envelhecimento e o sentido da existência, quando a mente atraiçoa o corpo e se refugia no passado, jogando às escondidas com o presente. Ou, então, quando o corpo teima em evidenciar que o presente se distancia da memória de outros tempos, tornando-nos prisioneiros de sonhos perdidos. Um relato que nos impõe reflexão sobre o que nos leva a gostar da vida, o que lhe dá sentido e a faz ser vivida.
“Se calhar, depois de tudo e de tantos livros lidos, sou um tonto.“
Sem Comentários