“Subhi e a família são refugiados. Foram obrigados a fugir da sua terra natal, onde eram constantemente perseguidos e alvo de perigos iminentes. (…) A família de Subhi, como outras famílias de refugiados, tem de viver no centro de detenção até que o governo se manifeste sobre os seus direitos e decida onde eles devem morar.”
Como os outros ocupantes do centro, a família de Subhi é Rohingya, uma minoria muçulmana que vivia no nordeste de Myanmar, antiga Birmânia, exposta a situações traumáticas de perseguição, violência e destruição no seu país, habituados a fugir – a fugir muito e de quase todos: o pai de Subhi nunca regressou depois de ter sido preso por escrever poemas; a mãe e a irmã mais velha foram colocadas pelos soldados num barco com outros Rohingya, sabendo que o regresso ao país representaria a morte.
Ainda que pretensamente acolhida na Austrália, a família de Subhi – como todas as outras – sabe que não pertence ali nem a qualquer outro país. Muitas encontram-se “encalhadas”, não lhes sendo permitido sair do acampamento por terem “uma avaliação de risco desfavorável”, assim como já não podem regressar a casa porque lhes foi concedido o estatuto de refugiados. À alegria e esperança inicial dos recém-chegados segue-se o desalento, quando se apercebem que estão numa “enorme gaiola para pessoas invisíveis que ninguém acreditava que existiam de verdade”. Não ter futuro passa a ser a pior coisa, pior até do que ser enviado de volta.
No acampamento existem 14 pares de sapatilhas para 900 pés, e recebê-las é um privilégio. A maioria das provisões indispensáveis à sobrevivência escasseia, mesmo quando chegam camiões com entregas. A abundância apenas acontece quando há uma visita do governo, de jornalistas ou de entidades humanitárias. Nessas alturas o pequeno-almoço é generoso; em todas as outras é escasso e pobre, sujeito à capacidade de comparência atempada nas filas de distribuição.
Subhi tem nove anos e foi o primeiro bebé a nascer no centro de detenção, o único lugar do mundo que conhece, e esta é a sua história como protagonista do livro escrito pela australiana Zana Fraillon, intitulado “O Rapaz que Contava Histórias” (Topseller, 2017).
Subhi apenas viu fotografias do exterior e do mar nos livros pelos quais se interessa e através dos quais sonha e aprende a ler, praticamente sozinho, uma vez que a escola existente no centro não parece verdadeiramente empenhada em ensinar.
Em torno de Subhi pululam personagens como os “Uniformes”, responsáveis por manter a ordem no centro, geralmente hostis e repressores. Harvey é diferente, simpático e atento, personagem representativa de um centro protector e não carcerário mas que, ainda assim, quando testemunha de comportamentos cruéis perpetrados pelos companheiros, é complacente, quiçá em nome da sua própria protecção.
Para além do relato que retrata o quotidiano no centro de refugiados há, na vida interior de algumas personagens, a representação da esperança e do sonho, através de histórias impregnadas de superstição e de magia, formas de compensação do vazio, do sofrimento e da falta de perspectiva – um pardal dentro de casa é entendido como um sinal de morte. Só que Subhi vive numa tenda, a única casa que conheceu nos nove anos da sua existência. Não há como confundir as duas coisas: uma casa é uma casa, não uma tenda, dir-lhe-á, para o tranquilizar, Eli, o amigo mais velho.
Subhi gosta de histórias sobre o passado que não viveu e que sabe ser triste. Apesar da pouca idade e falta de vivência no exterior sabe que perceber o passado é tão importante como olhar para o futuro – “quando as pessoas deixam de falar, quando deixam de perguntar, quando deixam de recordar, começam a perder pedaços de si”.
Num horizonte paralelo, ainda que contemporâneo, surge Jimmie, a jovem rapariga que gosta da escola mas falta muito às aulas desde que a mãe morreu. Vive com o pai e o irmão mais velho, ambos demasiado ocupados para lhe darem a atenção e o cuidado de que precisa. Ir à escola não é assim tão importante para ela, mas ler sim. Só assim poderá retomar o contacto com as histórias que a mãe lhe contava e que deixara registadas num caderno que a acompanha. Também Jimmie gosta de explorar memórias, mesmo as mais tristes, aquelas que a transportam para uma vida familiar difícil, quase itinerante, até que se fixaram nas imediações do centro de detenção para refugiados, olhados com desconfiança pela comunidade envolvente por pretensas comodidades concedidas aos acolhidos, difíceis de aceitar numa fase de crise económica generalizada.
A curiosidade leva Jimmie a explorar o que se passa no acampamento, passando a encontrar-se com Subhi que lhe lê o caderno de histórias da mãe a troco de chocolate quente e outras iguarias inacessíveis ao rapaz. Em conjunto sonham e renovam a coragem.
De leitura recomendável a jovens e adultos, “O Rapaz que Contava Histórias” é uma revelação simples e comovente do que foi e, suspeita-se, continue a ser, a verdadeira vida dos povos pretensamente protegidos em centros de refugiados. A comoção é maior pelo facto de o fazermos através de uma criança, a quem é limitada a capacidade de sonhar e crescer num universo de sonho e realidade.
As cifras de mortes entre os imigrantes birmaneses continuam a ser devastadoras, resultado da negligência e hipocrisia da falta de dignidade e humanismo com que são acolhidos. Na Austrália, como na Europa, persiste o dilema do que fazer com os milhares de imigrantes desesperados que procuram obter asilo de qualquer maneira. Conscientemente ou não existe uma tendência para acondicionar estas pessoas em verdadeiras gaiolas ou buracos, tempos a fio, deixando-as sem perspectiva, quase sem desejos porque para desejar é preciso esperança e essa nem sempre resiste à falta de horizonte.
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