A estreia de “O Primeiro Sol” acontece hoje, dia 13 de Maio, inserido no contexto do Festival Internacional de Expressão Ibérica, no espaço da mala voadora, Porto. Será o primeiro acto de um trabalho que terá continuidade nos próximos 12 anos, um acontecimento único com a duração de 9 horas e 36 minutos, começando às 20h43 (hora a que o sol se põe) e terminando às 06h19 (hora do seu nascimento), ocupando o período preciso de ausência de luz. A proposta lançada aos espectadores é a de viverem esse tempo com Sofia Dinger e M̶i̶g̶u̶e̶l Bonneville, acompanhando as diferentes texturas que a noite assumirá, sendo que será possível que as pessoas entrem e abandonem o espaço quando quiserem. Os bilhetes custam 5 euros e poderão ser adquiridos na bilheteira da mala voadora.
“O Primeiro Sol” é um convite para a leitura de um livro que só existe durante uma noite; Dinger e Bonneville escreveram-no no decorrer dos últimos quatro anos e disponibilizam-no para leitura apenas durante aquelas horas sem sol. Ao amanhecer, o livro desparecerá e só continuará vivo enquanto memória daqueles que estiveram presentes. Cria-se um ambiente sonoro, visual, sensitivo, que acompanha essa possibilidade de leitura e que é, no fundo, um lugar para ser habitado com a maior liberdade possível por cada um dos espectadores-leitores.
“O Primeiro Sol” é a primeira colaboração artística de Sofia Dinger e M̶i̶g̶u̶e̶l Bonneville, tendo como ponto de partida “A Gaivota”, de Anton Tchekov, e tantas outras referências (auto)biográficas a ela ligadas. Os artistas distanciam-se dela por abordarem os problemas falando sobre eles directamente – contrariando à partida a tendência das personagens Tchekovianas. Mais do que a peça em si, é nas personagens Treplev e Nina que se vão concentrar, como possíveis alter-egos, para pensar o estado do mundo e o estado da arte – uma vez que estas personagens procuram um sentido para as suas vidas, acreditando que encontrarão as respectivas identidades através da arte.
Nina deseja ser atriz. Treplev quer ser escritor. Ambos acreditam que realizar estes objectivos dará mais significado às suas vidas. Dinger e Bonneville – à sua semelhança e nos seus trabalhos – criticam duramente as próprias vidas, avaliando-as com padrões de aceitação elevados e deixando-se vulnerabilizar. Sabem, ao mesmo tempo, que os dias serão bem vividos enquanto perseverarem – não importa se falham ou se alcançam a grandeza. Chegam, portanto, a um acordo: a resistência é mais nobre do que o sucesso. “O Primeiro Sol” é então sobre resistir, sobre encontrar os pequenos triunfos do espírito em contraposição aos maiores fardos da vida, sublinhando que não há incompatibilidade entre a exploração do espaço interior e a rectificação do espaço social.
O espectáculo constrói-se a partir de corpos que não páram de pensar: o que fazer com este corpo que somos? Que histórias são passíveis de ser contadas por eles? E se a história que se tenta contar não for “totalmente” nossa? O corpo existirá num lugar híbrido, já não “nós” nem “eles”, mas entre? Constrói-se de corpos que, num jogo, se devoram a si próprios para se recriarem – ao mesmo tempo protagonistas e antagonistas, numa tentativa de autodomínio por meio de pensar contra si próprio. E corpos enquanto paisagem: um convite à contemplação, a sugestão de que experimentemos o espaço como preenchido, prenhe de poesia, pleno.
Uma dimensão de poesia reina, assim, neste projecto. Treplev debate-se com esta potência da poesia: como conseguir, através das palavras, dar espaço ao silêncio, para que assim o mundo se possa manter aberto? O sentido da vida de Nina é doar-se das asas possíveis. (A subjectividade constrói o seu território existencial a partir de outros territórios dos quais se apropria, misturando-os.)
Se a manutenção da personalidade requer salvaguardar a integridade das máscaras, e a verdade sobre uma pessoa significa sempre o seu desmascaramento – o estilhaçar da tal máscara -, então a verdade sobre a vida como um todo talvez seja o despedaçar destes mecanismos. Como viver a partir do paradoxo, como negar o tiro do Treplev, como não saber o que fazer-se com as mãos, e acreditar que é assim que a existência se cumpre no seu máximo fulgor? Como deixar de representar, enfim, fazer com que o interior e o exterior se harmonizem? (E isto ser tão verdade para Nina e Treplev como para a Dinger e Bonneville).
Ficha Artística & Técnica:
Co-criação e textos originais – Sofia Dinger e M̶i̶g̶u̶e̶l Bonneville
Desenho de Luz – Eduardo Abdala
Design Gráfico – ilhas studio
Residências – Estúdios Victor Cordon e Centro Cultural do Cartaxo/Materiais Diversos, Cão Solteiro . residências 120
Produção Executiva – Sofia Dinger, M̶i̶g̶u̶e̶l Bonneville, Susana Martinho Lopes, Carina Lourenço/Teatro do Silêncio
Apoio – Direcção Geral das Artes
Co-produção – Teatro do Silêncio, FITEI
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